TAIGUARA, POR FLAVIO TINÉ
TAIGUARA, O CANCIONEIRO DA ESPERANÇA
COMO SURGIU O ÍDOLO
Quando subia ao palco do Maracanãzinho para cantar nos
festivais nas décadas de 60 e 70 ele estava seguro de seu sucesso e contava com
a projeção proporcionada pela TV Globo para consolidar uma carreira que
começara dez anos antes, a partir de um show realizado no Teatro Paramount em
São Paulo, com Toquinho, Chico Buarque e Silvinha Telles, entre outros. O show
fora produzido por Walter Silva, o Picapau, e contara com os conjuntos de
Roberto Menescal e Oscar Castro Neves. Tinha um nome pomposo - “Mens sana in
corpore samba”, e integrava uma campanha pró Casas André Luiz.
Antes de se dedicar com grande disposição aos festivais,
Taiguara se mudara do Rio para São Paulo e se matriculara na Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, ao mesmo tempo em que frequentava os
“templos” da bossa-nova da rua Marquês de Itu, proximidades do Mackenzie. Ainda
não era sua vez.
Sua vez chegou no dia 27 de julho de 1968, no Maracanãzinho,
quando ficou em 1º lugar no III Festival Nacional de Música Popular Brasileira,
promovido pela TV Excelsior e pela Secretaria de Turismo da Guanabara. Cantava
“Modinha”, de Sérgio Bittencourt.
No V Festival Internacional da Canção Popular, promovido em
1970 pela Secretaria de Turismo da Guanabara e TV Globo, Taiguara conseguiu
emplacar Universo do Teu Corpo, num
modesto 9º lugar. Grande era a emoção do cantor, pois consagrava uma canção
dele.
Era um domingo, 18 de outubro. Olhos e ouvidos do Brasil
voltados para a emissora líder de audiência, quando os jurados consagraram em
1º lugar um conjunto chamado O Terço,
interpretando Tributo ao sorriso, de
Jorge Amiden e Sérgio Hinds.
Taiguara tinha alma de poeta e alimentava muitos sonhos ao
mesmo tempo. E não se conformava com a derrota.
Apesar de compositor de méritos, Taiguara consagrou-se com
composições de terceiros. Foi assim quando conquistou o primeiro lugar com
“Modinha” e também quando alcançou o primeiro lugar no 1º Festival
Universitário de Música Brasileira, com “Helena, Helena, Helena”, de Alberto
Land. Na segunda versão do mesmo festival ganharia o 2º lugar com “Nada Sei de
Eterno”, de Sílvio Silva Júnior e Aldir Blanc, além do prêmio de melhor
intérprete. Assim, a década de 60 e 70 foi marcada por vários prêmios e
incontáveis turnês pelo país e também várias viagens internacionais.
Em menos de dez anos, Taiguara sairia dos palcos
universitários de São Paulo para as plateias do Maracanãzinho, alcançando os
excelentes índices de audiência da TV Globo e usufruindo a condição de grande
ídolo.
RELAÇÕES TUMULTUADAS COM A CENSURA
Nenhum autor teve tantas músicas proibidas. Taiguara, Chico
Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré e muitos outros eram as vítimas
preferidas da censura. Alguns tinham
mais sorte, como Chico, que usava de sutilezas verbais e metáforas para vencer
os obstáculos. Mesmo percebendo a manobra, os censores deixavam passar, quem
sabe na esperança de que não desse em nada. A maioria dos compositores
contemporizava, apelava para palavras similares ou utilizava inteligentemente
um jogo de palavras que não despertasse o furor dos censores.
Taiguara era uma exceção. Rebelava-se. Chegou a propor,
irônicamente, uma parceria com o pessoal, conforme confessou numa entrevistas.
A certa altura de sua carreira, seus shows passaram a ser
assistidos por dezenas de censores. “Não sei onde eles arrumaram tanta gente”,
conta ele em entrevista ao Shopping News em 1983.
Uma das respostas mais brilhantes foi a gravação de um disco
chamado “Imyra, Tayra, Ipy”, produzido com Hermeto Pascoal e inspirado em um
Brasil indígena. Mesmo assim, o lançamento do disco, entre as ruínas das
missões jesuítas, no Rio Grande do Sul, foi proibido. Mas virou uma raridade,
disputado por colecionadores e fãs.
Anos mais tarde (2008) Lula Barbosa, Míriam Miràh e Mário
Lúcio - o Tribo Mira Ira, apresentaria no Centro Cultural São Paulo o
espetáculo "De Mira Ira a Imyra Tayra Ipy", inspirado na natureza e
na cultura de povos ameríndios.
Sem uma divulgação à altura, o espetáculo lotou a sala
Adoniram Barbosa.
Lula Barbosa tem mais ou menos as mesmas origens de Taiguara.
Começou nos festivais universitários de São Paulo e acabou como uma das
estrelas dos festivais de MPB e também de festivais latino-americanos. Nos
bastidores desses festivais cruzou inúmeras vezes com Taiguara, de quem se
tornou amigo e admirador. O show era uma sequência de esquetes em favor da
causa indígena, entremeando sucessos de Taiguara, inclusive músicas de teor
latino-americano - em espanhol, naturalmente. Como se sabe, por suas origens de
pai milongueiro, que tocou bandoneon nas noites de Montevidéu e Buenos Aires,
Taiguara tinha enorme familiaridade com esse tipo de sonoridade.
Foi a mais emocionante lembrança do cantor-compositor desde
sua morte em 1996. Uma plateia de senhores já com alguns cabelos brancos
aplaudia o grupo teatral e os cantores. A mídia, mais uma vez, esteve
ausente.
CASO DE AMOR COM OS MÚSICOS
Para gravar ou se apresentar, Taiguara se cercava dos
melhores instrumentistas. Foi assim quando gravou seu primeiro disco, conforme
me contou o pai dele, e foi assim também em outras oportunidades.
Taiguara conhecia pessoalmente cada um deles, em suas
diversas participações em festivais, em emissoras de rádio e televisão e em
estúdios de gravação. Conhecia partitura e tocava piano muito bem, o que
facilitava seu trânsito entre os melhores músicos do país. Talvez por isso
nenhum deles jamais se recusou a cooperar com seus projetos, mesmo que isso não
lhes rendesse coisa alguma. Era um caso de amor à música e aos músicos. Quando
Taiguara assumia o comando havia cooperação e extrema sensibilidade a seus comandos.
O CONFORTO DE TER INIMIGOS
E muitos, muitos amigos
No seu jeito bonachão, Taiguara tinha muitos amigos. Era
daqueles que deixavam o palco e corriam para o boteco para comemorar,
conversar, discutir. Habitualmente terminava tudo bem, a não ser que a conversa
descambasse para política. Taiguara começava com os argumentos mais comezinhos
e chegava à loucura na defesa dos humildes, dos indígenas, dos africanos e das
crianças. Era intransigente, tinha argumentação poderosa, e era dotado de um
poder de convencimento típico do melhor advogado. Afinal, estudara Direito no
Mackenzie, em São Paulo.
Com a mesma facilidade fazia inimigos, mesmo sem desejar.
Eles não afloravam, mas faziam sombra à carreira do cantor à medida que
Taiguara se revelava por inteiro um combatente político, um Guevara cheio de
tons e semitons, que substituía a metralhadora pelo violão ou pelo piano. Até
hoje esses “inimigos” afloram.
No passado, estavam principalmente na censura federal, que
lia suas letras com lupas, ou simplesmente as recusava sem ler.
Havia na verdade inimigos discretos, que temiam
comprometer-se, especialmente na segunda fase da carreira do cantor, em que
passou a não medir palavras nem conseqüências. ´
Ainda hoje, é como se
o fantasma de Taiguara pudesse renascer através de um vodu e de alguma forma
para prejudicá-los.
Taiguara ? Quem? Não gostaria de opinar. Gostava muito dele,
mas não tenho muito a dizer. Foi mais ou menos esse o diálogo com o grande
Paulinho da Viola, quando o abordei no Memorial da América Latina. Toquinho
mandou um recado, depois de muito assédio, confessando-se admirador de
Taiguara, mas... E ficou no mas. Outros artistas dão a impressão de que querem
evitar contágio com figura tão polêmica, como se tal proximidade, ou qualquer
depoimento, pudesse comprometer seus vínculos com a burguesia, ou prejudicar
seu faturamento.
Por que pesquisar a vida de um desconhecido, perguntou-me
maliciosamente um amante da MPB, que emendou: não seria melhor fazer um livro
sobre Luís Gonzaga? Já o professor Bernardo Kucinski, da ECA, foi mais prático,
quando consultado a respeito: não, não o conheço.
Outro marxista, que conviveu com Taiguara nos bares da Lapa,
foi objetivo: ainda bem que ele tinha inimigos, disse o psiquiatra marxista
Frederico Sérgio, que achava ótima a idéia do cantor ter inimigos. Chamava isso
de “o eu e o outro no exercício da cidadania”, já que “a lei nos garante a mim
e a meu inimigo”. Andava com o endereço de Taiguara na mão: rua Veríssimo
Flores, 291, apartamento 302, Leblon. E repetia: ele tinha inimigos, graças a
Deus. E somos ateus. Para Fred, ter inimigos é, antes de mais nada, um
conforto.
NOME INSPIRA CORAÇÕES
A partir do sucesso do cantor e compositor, muitos fãs
resolveram homenageá-lo, nomeando seus filhos com seu nome. Basta recorrer aos
diferentes mecanismos de consulta, como listas telefônicas. Outros emprestaram
o nome do artista a pequenas empresas ou projetos.
É o caso, por exemplo, das Casas Taiguara, do bairro Bela
Vista, São Paulo. Foi a primeira entidade a acolher crianças e adolescentes em
situação de risco social, mas não delinqüentes. Criada em 1993 por iniciativa
do industrial e escritor Daniel Fresnot, a entidade foi inaugurada com o apoio
e presença de Ana Lasevicius, viúva de Taiguara e mãe de Lenini Guarani, que
tinha nove anos quando compareceu ao evento. Conta atualmente com cinco
unidades, uma delas a Casa Taiguara de Cultura Prevenção, parceria com a
Secretaria de Estado da Saúde. Outro
convênio, com o Ministério da Saúde, propicia o desenvolvimento de educação
artística com apoio do Projeto Arte-Educação e Prevenção.
O nome da entidade foi uma sugestão do contador Jorge
Valente, em reconhecimento à preocupação do cantor-compositor com crianças e
adolescentes. As Casas Taiguara atendem a um contingente muito pequeno,
levando-se em conta as necessidades de uma cidade como São Paulo, mas Taiguara
provavelmente se orgulharia de sua existência.
LENTA AGONIA
Che Guevara morreu em minutos na Bolívia, no dia 7 de
outubro de 1967, com alguns tiros. Taiguara morreu após agonia de mais de cinco
anos, no dia 14 de fevereiro de 1996 em São Paulo. Desde que os médicos
diagnosticaram neoplasia (câncer) de bexiga Taiguara percorreu longos caminhos,
que incluíram tratamentos nos Estados Unidos e em Cuba.
Começou com quimioterapia e radioterapia em 1992 e 1993. Em
20 de julho de 1994 internou-se por dois dias no Hospital Sírio Libanês para
realização de exames que investigariam sequelas do tratamento anterior. Três
meses depois seria diagnosticado tumor na vesícula, sinal de que o câncer
progredia, atingindo outros órgãos. Foi feita uma cistoscopia, ou retirada de
tecidos moles incrustrados no órgão. Ao mesmo tempo, em novembro de 1994,
Taiguara teve pneumonia. Em 1995 foi feita ressecção endoscópica do tumor
vesical. O óbito foi constatado em 14 de
fevereiro de 1996.
Durante a longa agonia no Hospital Sírio Libanês Taiguara
contou com as melhores equipes médicas, os melhores recursos, a melhor
assistência. O médico responsável era o urologista Miguel Srougi, que contou
com a colaboração do cirurgião Marcel Cerqueira César Machado, especializado no
aparelho digestivo, e do neurocirurgião Manoel Jacobsen Teixeira. Todos são
professores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Enquanto os professores Miguel Srougi e Marcel Machado
tentavam impedir o avanço da doença, através de procedimentos cirúrgicos no
sistema nefrológico e no intestino, aumentavam as dificuldades, pela
inexorabilidade da doença, sabidamente cruel e progressiva.
Convocado a apenas um mês do desenlace, o professor Manoel
Jacobsen Teixeira admitiu que sua missão foi essencialmente minimizar o
sofrimento do cantor.
“Conheci um paciente cooperativo, que interagiu
positivamente, dando-me a oportunidade de viver seus últimos dias sem dores,
graças a uma medicação adequada”, confidenciou-me o referido médico, diretor da
Divisão de Neurocirurgia do Hospital das Clínicas da FMUSP. Os outros médicos
envolvidos com o tratamento evitaram falar a respeito.
DESDE O COMEÇO
A história de Taiguara Chalar da Silva começa a 9 de outubro de 1945 em
Montevidéu e termina em São Paulo, Capital, a 14 de fevereiro de 1996, quando
tinha 50 anos e 4 meses. A discussão em torno de sua morte segue mais ou menos
aquela tendência do imaginário popular de sublimar a morte dos artistas,
enxergando mistério em tudo. Buscam-se razões as mais estranhas, esotéricas
até, para explicar a morte de um ídolo.
Não faltam ainda hoje especulações como as que ocorreram com a morte de
Tancredo Neves, Castelo Branco, Juscelino Kubitschek e tantos outros. Em menor
escala, claro. O caso mais conhecido é o de Tancredo. Até hoje as pessoas
abordam os jornalistas com a inevitável pergunta que também é uma afirmação:
ele teria morrido antes e foi mantido vivo até o dia 21 de abril, data histórica
importante, etc. Por mais que se argumente, ninguém convence o povo do
contrário. O InCor e o professor Henrique Walter Pinotti até hoje carregam o
estigma de terem participado ativamente da morte de Tancredo.
Não vamos conferir à morte de Taiguara a mesma importância. Ela não teve o
mesmo peso na mídia. Mas as especulações existiram, e ainda existem, talvez
pelo fato dele ter mexido com a sensibilidade popular. E pelo fato dele ter
alimentado a idéia de perseguição. Outra alegação inevitável é a morte prematura,
se é que a morte aos 50 anos pode ser considerada prematura, num país em que as
estatísticas sobre a média de vida são controvertidas.
Taiguara morreu de tanto amar, diria Vinícius de Moraes, vivo fosse. Já o pai
de Taiguara é mais realista. Acha que ele foi vítima de excessos alimentares.
Muita carne, no melhor estilo de sua origem gaúcha, e muito vinho. O câncer na
bexiga interrompeu uma carreira em ascensão.
Infância, entre pianos e bandoneons
Antes de Taiguara nascer, seu avô, o gaúcho Glaciliano Correa da Silva, tocava
bandoneon em Porto Alegre e por todo o interior do Rio Grande do Sul. Seu
repertório era basicamente música gaúcha, mas também incluía o tango argentino.
Quando o pai de Taiguara tinha 12 anos, toda a família foi a Montevidéu, para
tentar resolver um problema de saúde de um irmão, Turiassu Correa da Silva, que
era paraplégico devido a uma hidrocefalia. Eles tinham sido atraídos pela
notícia de que no Uruguai havia um médico muito bom nesses casos. Moraram dois
anos lá.
A viagem não curou o tio de Taiguara, mas pode ter criado o primeiro elo que
explicaria o fato dele ter nascido na capital uruguaia, já que, alguns anos
mais tarde, as dificuldades financeiras da família levaram Ubirajara Correa da
Silva, também músico profissional, a mudar-se para Montevidéu, não sem antes
pensar muito na hipótese de ir para Buenos Aires, aonde tocara muitas vezes.
Ubirajara conhecia muito bem a rivalidade entre brasileiros e argentinos.
Sentiu na própria pele o que é ser brasileiro em Buenos Aires. No mínimo, um
rejeitado. Daí sua opção por Montevidéu.
Logo se engraçou de uma cantora, Olga Chalar, com quem veio a casar-se em 194x
e com quem teve dois filhos: Taiguara Chalar da Silva e Araguari Chalar da
Silva.
Em janeiro de 1949 Ubirajara e Olga vieram para o Rio de Janeiro. Taiguara
tinha 4 anos, seu irmão 2. O primeiro ano foi em Santa Cristina e dessa fase
Taiguara não lembra muita coisa, mas contava sempre que convivia com filhos de
portugueses e espanhóis e que nas noites de lua o cenário era de música de
Vinícius. “Ainda hoje, quando ouço cavalo-marinho” me lembro de Santa Cristina,
disse Taiguara a Marcos Baby Durães, em memorável entrevista concedida à rádio
Jovem Pan AM, de São Paulo.
Quando saiu de Santa Cristina foi para a Lapa. Morava numa casa na esquina da
Mem de Sá com Rezende, onde havia uma oficina de acordeón do avô, Glaciliano.
Por ela passavam os mais famosos acordeonistas da época.
Nas entrevistas, porém, fala mais dos tempos de Santa Teresa, que seria o
bairro mais constante em sua vida, pois mesmo tendo morado na Barra da Tijuca
(Rio), no Embu (São Paulo), em Pau Amarelo (Olinda-PE) e tantos outros lugares,
sempre acabava voltando para a antiga casa, aonde ainda hoje existem algumas
coisas daqueles tempo, especialmente o primeiro piano comprado pelo pai.
Quando tinha nove anos, foi visitar sua avó materna em Montevidéu. Pegou a
bicicleta de um vizinho e pedalou em quase toda a cidade, embevecido com suas
ruas arborizadas, e até circundou a estátua do Parque Rodô (?). Resultado: ao
voltar para casa, levou merecidas palmadas de sua mãe, que não sabia onde ele
andava.
Essa, a única recordação de ter sido punido pelos pais por causa de alguma
arte. No mais, foi um garoto bem comportado, que adorava música brasileira, mas
tocava “rock”. Seus primeiros ídolos foram Sílvio Caldas, Luís Vieira, Maysa,
Doris Monteiro, Tito Madi, entre outros. Chegava a imitar Luís Vieira, de quem
gravaria, mais tarde, o famosíssimo “Paz do meu amor”, que na verdade se chama
Prelúdio no 2.
Embora a MPB fosse seu xodó, não podia fugir às influências da época, que não
eram do jazz. No caso da rapaziada, o negócio era rock mesmo. E Taiguara
imitava, à perfeição, segundo todos os testemunhos, nada menos que Elvis
Presley. Vestia-se igual a ele para se apresentar em shows no colégio em que
estudava.
Dos bancos da faculdade para os palcos da noite
Taiguara tinha 17 anos quando seu pai o matriculou no Instituto Mackenzie, uma
das mais respeitáveis escolas superiores de São Paulo, para estudar Direito.
Com ele, estudava também seu irmão mais velho, Araguari Chalar da Silva, que
chegou a se formar em Psicologia, mas faleceu jovem, aos 47 anos, vítima de
câncer no intestino. Sempre trabalhando muito, Araguari só detectou a doença
quando era tarde demais.
Taiguara começou sua carreira no João Sebastião Bar, um dos pontos de encontro
dos artistas na década de 60, situado pertinho do Mackenzie, onde era um aluno
à Castro Alves, preocupado com as injustiças sociais e preconceitos, que
procurava canalizar sua indignação para a arte.
Um de seus ídolos era Vinícius de Moraes, que conhecera aos 13 anos, nas rodas
de samba ou de literatura do Rio de Janeiro. Vinícius morava no Rio, mas
baixava em São Paulo de vez em quando, e ia sempre ao barzinho da rua Marquês
de Itu, onde se encontrava com Chico Buarque, Claudete Soares, Geraldo Vandré,
Airto Moreira e muitos outros que pontificavam na meca paulista da Bossa Nova.
Durante cerca de um ano, Taiguara cantou naquele bar. Ainda não um
profissional, mas já dava o seu recado, tendo como padrinhos artísticos Chico e
Claudete.
Em seguida, foi convidado pela Philips para gravar seu primeiro disco, “Samba
de copo na mão”, que logo entrou nas paradas de sucesso.
Um dos primeiros espetáculos de grande público de que participou foi produzido
por Walter Silva, o famoso descobridor de talentos da MPB. Realizado em 16 de
novembro de 1964, Mens Sana In Corpore Samba contava com uma turma onde
apareciam, pela ordem, Toquinho, Taiguara, Maria Lúcia, Chico Buarque, Ivete,
Tuca, Solano Ribeiro, Sérgio Augusto, Bossa Jazz Trio, Bossatoa, Roberta Faro e
Os Poligonais. A segunda parte era a repetição de um show da boate Zum-Zum, com
Silvia Telles, Conjunto Roberto Menescal e Oscar Castro Neves.
Os primeiros discos, os primeiros shows
Daí pra frente o sucesso não foi difícil. Seu primeiro LP, ainda da Philips,
foi produzido por Luiz Chaves, do Zimbo Trio. Conta o pai de Taiguara, o também
músico e maestro Ubirajara Correa da Silva, ainda hoje entregue à rotina do
trabalho no Rio de Janeiro, que foi esta a primeira vez que uma gravadora
colocou num estúdio uma orquestra inteira, com mais de 60 músicos. E deu a
Taiguara toda a liberdade para escolher o repertório, arranjos e demais
detalhes necessários à realização plena de seu trabalho.
Pelo menos nesse ponto, Taiguara nunca pôde se queixar: sempre gravou o que
quis, com os arranjos que ele mesmo fez ou encomendou aos amigos, e participou
ativamente de todo o processo de produção.
“Eu queria me provar que era um grande artista. Então gravei um disco com trinta
figuras, mil cordas, trompas soando”, disse Taiguara a Luís Carlos Sá em abril
de 1970, mas não entendia por que o LP não tinha dado certo, quer dizer, não
tinha sido um estouro de vendas.
Foi nessa época que Taiguara participou de um show produzido pela dupla
Miéli-Bôscoli, chamado 1o Tempo 5xO, com Claudete Soares. O show fez muito
sucesso e ficou um ano em cartaz no Rio de Janeiro.
A fase gloriosa dos festivais
A fase gloriosa foi a dos festivais. Taiguara foi quatro vezes finalista do
Festival Internacional da Canção, como compositor e intérprete, destacando-se
com “Chora, coração”, de Vinícius e Baden Powell e com “Universo do teu corpo”,
dele mesmo.
Sobre essa última canção, anos depois, Taiguara costumava fazer um apelo no
sentido de substituir os seus primeiros versos por “eu não desisto e sempre
existiu o amanhã que eu persegui”. O apelo veio tarde demais. Ainda hoje essa
música é uma das mais apreciadas pelo seu público.
Era o V Festival Internacional da Canção. A música ficou em oitavo lugar e
revoltou Taiguara, que desabafou em Fatos e Fotos de 12 de novembro de 1970:
“Quando resolvi concorrer não podia imaginar que as pressões econômicas fossem
tão grandes. Todo mundo achava que eu merecia o primeiro ou o segundo lugar,
mas como gravo pela Odeon e não pela Philips (e o júri era composto pelo
pessoal da Philips), me deram o oitavo lugar. Isso me deixou desesperado, mas
ainda assim procurei me acalmar. Afinal, o público do Maracanãzinho estava do
meu lado, me aplaudindo e vaiando o júri, que não teve a coragem de dar a
colocação que eu merecia. Mas, o que me deixou doente mesmo foi eu ter sido
convidado para a festa de encerramento, segunda-feira à noite no Teatro
Municipal e na última hora ter sido cortado. Isso foi um dos maiores trambiques
que sofri na vida.”
Taiguara tinha feito uma roupa especial para a festa: “Agora eu entendo tudo:
não interessa à TV Globo que o público conheça minha música, porque não sou
contratado dela e comecei na TV Tupi, num programa de Flávio Cavalcanti. Por
todas essas implicações econômicas, que matam o festival, não participo mais do
FIC. A gente precisa é uma coisa livre, tipo Woodstock. Um festival ao ar
livre, numa praça, onde o povo possa ir sem pagar. E nós artistas possamos
fazer uma verdadeira feira musical.”
Na entrevista, Taiguara conta com a solidariedade de Michèle Torr, que também
não conseguiu boa colocação e confessa não entender o júri: “Fui uma das mais
aplaudidas e não cheguei nem ao décimo lugar”, disse ela.
Além de acusar os jurados que, segundo ele, não entendem nada, Taiguara acusou
também o som:
“No dia da apresentação, o som do Maracanãzinho era ruim, não deu pra ouvir
nada”.
Dia seguinte ao festival, a Odeon fez um coquetel para lançar o LP Viagem,
contendo “Universo do teu corpo”. O disco seria lançado independentemente do
resultado do festival. Marcado para 18 horas, Taiguara só chegou lá pelas 20,
com a desculpa de que tinha ido ao médico, para verificar suas cordas vocais. O
lançamento se transformou numa reunião de solidariedade a Taiguara, com a
presença, entre outros, de Toni Tornado e Cláudia, que também haviam
participado do festival. (Obs: que músicas defenderam e que classificação
conseguiram?)
Durante a festa, Taiguara fala sobre suas incursões cinematográficas. Trabalha
como ator em O Bolão, filme que classifica como chanchada. Vai começar a fazer
roteiros cinematográficos, sem prejuízo de sua carreira de compositor. Sem
alusão direta ao nome do LP, dá os primeiros sinais do que seria, mais tarde,
uma característica de sua carreira: viajar. Comentava com os amigos que só iria
esperar a saída do filme, em novembro (1970), para começar os preparativos de
uma viagem ao exterior. Estava escolhendo um país da Europa, mas não excluía os
Estados Unidos de seus futuros roteiros.
O País escolhido foi Londres, onde esperava gravar o que proibiam aqui. Foi ao
encontro de Peter Philips, que apesar do nome, não era da gravadora Philips, e
sim diretor da Odeon inglesa, a EMI-Odeon. Sabia-se que ele jamais dera
oportunidade a estrangeiros, mas Taiguara o enfrentou corajosamente e conseguiu
êxito em sua empreitada. Gravou 18 músicas, que jamais foram editadas pela
gravadora. Mais tarde, Taiguara denunciava que tudo tinha sido de propósito, ou
seja, a gravadora não queria que ele gravasse aquelas músicas em lugar nenhum,
muito menos no Brasil. Taiguara chegou a suspeitar que a gravadora estaria
sendo gentil ao governo militar. E alardeou essa suspeita, jamais comprovada na
prática. Já a essa época, Taiguara revelava uma mania de perseguição que o perseguiria
para o resto da vida.
Não há registros na imprensa de que ele tivesse sido perseguido como Caetano
Veloso e Gilberto Gil, por exemplo. Ao contrário, há inúmeras entrevistas em
que ele admite que entrou em acordo com a Censura. Sempre que uma de suas músicas
era vetada, ele comparecia à Polícia Federal e tentava mudar uma ou outra
palavra, na tentativa de liberar a letra. Em 21 de setembro de 1971 o Jornal do
Brasil anunciava que “a Censura Federal manteve ontem a proibição da música
Corpos Luz, de Taiguara, sob o argumento de que não foram substanciais as
modificações feitas pelo compositor na letra da canção”. O argumento da Censura
era tão confuso quanto a mudança. Taiguara trocara o título para Fazendo Deus.
Voltando a Londres, Taiguara mostrou suas músicas a John Cameron, famoso
arranjador e compositor que, naquele momento, fazia a trilha sonora de um filme
de Elizabeth Taylor. Cameron prometeu gravar um compacto com suas músicas e
foram escolhidas A transa, Hoje, Rua dos ingleses e Viagem. Em sua volta ao
Brasil (maio de 1972), Taiguara contava orgulhoso suas conquistas e anunciava
que voltaria a Londres em agosto daquele ano para entrar seriamente no mercado
europeu, a convite de Peter Philips.
Antes da passagem por Londres, Milton Miranda, seu produtor à época, havia
levado Taiguara a Paris, onde Françoise Hardy fazia sucesso com uma versão de A
transa. Milton e Taiguara foram recebidos por Alain de Ricou, da Pathé Marconi,
que prometeu gravar a divulgar suas músicas na Europa e forneceu uma carta de
apresentação ao diretor da KPM inglesa. Em Paris, Taiguara reencontrou Tuca,
cantora brasileira que começara com ele, nos famosos shows universitários de
São Paulo, e fazia sucesso como produtora, cantora e compositora.
A história de Modinha
Taiguara conquistou o lo lugar no festival “Brasil Canta no Rio”, com Modinha,
de Sérgio Bittencourt (filho de Jacob do Bandolim), recebendo o prêmio de
melhor intérprete.
A participação de Taiguara nesse festival ocorreu de forma inusitada. Sérgio
procurou inicialmente Sílvio Caldas, que não aceitou o convite, alegando a
existência de outros compromissos. Eliana Pittmann também não pôde ou não quis.
E até o Quarteto OO4, que não era dos mais famosos, recusou o convite para
defender Modinha. O autor já estava desiludido quando se encontrou com
Taiguara, que também resistiu. Afinal, não conhecia a música e estava sendo
solicitado na qualidade de regra três. Mas Taiguara não poderia deixar de
atender ao pedido de um amigo. Sendo, ainda, o filho do grande e inesquecível
Jacob do Bandolim, um dos grandes mestres desse instrumento. Foi justamente
Jacob que salvou Taiguara, na primeira apresentação, segurando a melodia pouco
conhecida do intérprete. Taiguara não decorara a letra e errara tudo. Mesmo
assim, a música foi classificada. E deu no que deu. A interpretação de
Taiguara, já na fase de disputa, foi tão marcante que até hoje essa música é
uma das puxadoras de vendas de seus discos, sucessivamente relançados pela
EMI-Odeon.
Quem não se lembra de Taiguara em todos os televisores do Brasil, o público
emocionado como num final de Copa do Mundo, algo assim.
Taiguara teve também a sua Helena
Taiguara também foi primeiro lugar no 1o. Festival Universitário da Música
Brasileira, com Helena, Helena, Helena, de Alberto Land, em 1969.
Aqui cabem algumas explicações dadas pelo próprio cantor, em entrevistas. A
música, como se sabe, fala de uma prostituta. “Eu chorei de verdade no próprio
palco porque senti a minha realidade”, disse Taiguara em entrevista à Jovem
Pan. Contou que por volta de 1966, 67, freqüentava um bar chamado Vila Verde,
no caminho da rua Frei Caneca, que era também frequentado por Ismael Silva, Edu
Lobo, Francis Hime, entre outros. O bar tinha esse nome porque servia um
delicioso caldo verde.
Taiguara, como Alberto Land, tivera também algumas aventuras na Lapa, famoso
reduto boêmio e de prostitutas. Não há compositor carioca ou paulista de peso
que não tenha passado por seus bares desde as décadas de 30 e 40.
Taiguara chegou a se apaixonar por uma delas. E a música de Alberto Land
mostrava exatamente uma situação similar à que ele tinha vivido, daí o pranto
difícil de controlar.
“Eu não me senti cantor naquele momento. Por um instante eu tive uma imagem de
vida, uma outra realidade brotando por dentro”, relembra.
O próprio Land admitiu que compôs a música chorando.
Quanto à escolha dele para intérprete, foi uma decisão unilateral de Jacob do
Bandolim:
“Você vai cantar essa música”, disse ele a Taiguara. E ponto final.
Jacob era um dos músicos que acompanhavam Modinha. Quando Taiguara a defendeu
pela primeira vez, errou a letra, que não tinha decorado por completo. Foi
Jacob que salvou o intérprete, com um providencial solo, ajudando-o a
continuar, cantarolando.
Foi naquela noite que Taiguara fez seu primeiro discurso durante uma
apresentação. Ao voltar para o bis muita gente conversava em voz alta na
platéia, comentando o pranto de Taiguara. Ele deu a bronca:
“Olha, vocês precisam entender que nem tudo nesse mundo é embromação. Não me
comovi aqui de grupo, não. Isso aconteceu por uma razão muito forte: eu acho
que todo mundo tem sua Helena na vida”.
Taiguara parece ter tomado, a partir daí, o gosto pelo discurso. Começava a
mudar seu comportamento. “Eu me encontrei, bicho. Foi o primeiro recado que eu
dei mesmo. Antes era tudo artificial, era tudo aquele negócio de artista e
coisa e tal”, continuou Taiguara, falando ainda a Luís Carlos Sá.
No 2o Festival Universitário da Música Brasileira Taiguara ficou em 2o lugar
com Nada sei de eterno, de Silvio Silva Júnior e Aldir Blanc, bem como o prêmio
de melhor intérprete.
Em 1967 assinou contrato com as Associadas e comandou um programa semanal na TV
Tupi do Rio de Janeiro, “Farhrenheit 2000”. Em 1968 participou de um movimento
musical chamado “Musicanossa” e assinou contrato com a Odeon, para gravar os
sucessos dos festivais.
Assim, a década de 70 foi uma sucessão de prêmios, turnês, circuitos
universitários e viagens internacionais.
No auge de sua carreira, que não tinha então mais que cinco anos, viu-se
tentado a casar-se.
Levou ao altar a filha de um músico, Geisa.......
Sua carreira foi bem até sentir na pele os efeitos da censura. Já desfrutando
de enorme popularidade, Taiguara começou a sofrer com a censura a seus novos
trabalhos. Chegou a contar mais de 40 vetos. Começou então a pensar em
mudar-se. E justificava sua inconstância com a necessidade de estudar,
reciclar-se, aprender mais sobre o Brasil...
Aproveitou para aceitar convites para cantar no exterior e decidiu exilar-se,
ao mesmo tempo em que mergulhava de corpo e alma em pesquisas, em viagens aos
Estados Unidos, Europa e África. Em Londres gravou um disco, que não chegou a
ser lançado no Brasil, supostamente por desinteresse de sua própria gravadora.
Vai ver ela não queria desagradar o regime.
Exatamente nessa data o jornalista e produtor musical Walter Silva comemorava
discretamente o 33o aniversário do primeiro grande show realizado no Teatro
Paramount com Elis Regina, então com apenas 20 anos de idade.
Ao lado do cartaz do show de Elis havia outro, que anunciava o show “Mens Sana
In Corpore Samba”, promoção da Faculdade de Educação Física da Universidade de
São Paulo.
Era o primeiro show importante de que Taiguara participava em São Paulo, no dia
16 de novembro de 1964. Taiguara era o segundo da lista de um cartaz onde
apareciam, pela ordem, Toquinho, Taiguara, Maria Lúcia, Chico Buarque, Ivete,
Tuca, Solano Ribeiro, Sérgio Augusto, Bossa Jazz Trio, Bossatoa, Roberta Faro e
Os Poligonais. A segunda parte do espetáculo era um show da boate Zum-Zum, com
Silvia Telles, Conjunto Roberto Menescal e Oscar Castro Neves.
Nas paredes de sua elegante casa no bairro do Morumbi, em São Paulo, Walter
Silva ostenta com justo orgulho esses e outros cartazes dos primeiros de shows
de MPB que promoveu na década de 60, inclusive o primeiro grande show com Elis
Regina naquele 31 de agosto de 1964, antes do Mens Sana, que tive o privilégio
de aplaudir de pé e emocionado.
Walter ficou na história da MPB como um dos maiores descobridores de talentos.
Por suas mãos passaram grandes nomes. Ele tinha um programa na Rádio
Bandeirantes que fez história, o Pick-Up do Picapau, que tocava
preferencialmente artistas de qualidade, alguns ainda desconhecidos do grande
público. Em outubro de 1997, dois meses depois de reviver esses fatos, Walter
foi operado do coração, recebendo quatro pontes de safena, por coincidência no
mesmo hospital em que morreu Taiguara, o Sírio Libanês, em São Paulo.
Claro que as gravadoras apreciavam a conduta de Walter. Afinal, ele acabou
sendo um descobridor de novos talentos. Durante muitos anos manteve essa
característica, descobrindo novos valores e promovendo-os, tanto nas emissoras
de rádio como nos shows que produzia com grande sensibilidade e sobretudo com
grande senso de oportunidade.
“Para mim, Taiguara era um épico, um exagerado. Eu não gostava de suas
interpretações teatrais, mas de sua música, sim”, disse o incentivador de
dezenas de artistas que mais tarde se tornariam nomes de grande expressão
nacional e internacional.
Pai queria outra carreira para o filho
Quando o assunto é Taiguara, o pai dele, Ubirajara Correa da Silva, 74 anos,
ainda se emociona. Fala com entusiasmo, vibra ao recordar o menino, o jovem e o
adulto impulsivo. Tendo extinguido seu conjunto, Ubirajara é ainda hoje
(outubro de 1997) requisitado para apresentações as mais diversas. Na semana em
que conversamos, ele preparava um workshop que realizaria no dia seguinte num
colégio de Jacarepaguá. Era uma proposta didática, de levar aos estudantes a
música instrumental ao vivo. No repertório que ele mostraria aos estudantes
estavam desde um pout porri de tangos até clássicos como “Sardas”, de Monzzz???
, “A Dança ritual do fogo”, de Manuel de Falla, “O vôo do besouro”, a
“Protofonia do Guarani”, de Carlos Gomes. Esta última, aliás, era tocada num dos
shows com que Taiguara excursionou por todo o Brasil.
Na mesma semana em que concedia entrevista, Ubirajara gravaria uma cena da
novela “Por Amor”, da TV Globo, em que o dono da casa (Eduardo Dolabella)
interrompe uma festa e pede ao conjunto para tocar um tango. Entra Ubirajara
com o seu bandoneon, inicialmente sob os apupos da platéia jovem, e em seguida
emocionando a todos com um som maravilhoso. Regina Duarte e Antônio Fagundes
dançam emocionados, sob os olhares curiosos da platéia.
Por um momento, os músicos são alvo de atenção, mas ninguém percebe que aquele
bandeonista perfeito é o pai de Taiguara. Veterano da noite, acostumado a essa
relativa indiferença, Ubirajara faz a sua parte, garantindo os volteios dos
dançarinos.
No dia 14 de outubro de 1997, Ubirajara me explicou as origens musicais de
Taiguara, que são as mesmas do pai e do avô:
“Eu era um cara que só trabalhava. Fui músico, sempre músico. Houve uma época
em que eu tinha uma certa projeção, pois a música instrumental era ouvida com
respeito. Nós tínhamos Waldir Azevedo, Dilermando Reis, Rago, Jacob do
Bandolim, Chiquinho do Acordeon, Antenógenes Silva, Caçulinha, Silvio Mazzuca,
Severino Araújo, Radamés, muitos instrumentistas. Eu era acompanhante de
artistas, em shows e em gravações. Muitas vezes acompanhei Ângela Maria,
Agnaldo Timóteo, Elis Regina...hum, são tantos que a lista ficaria cansativa.
Mas tinha também o Ubirajara e seu Conjunto, que durou 30 anos. Cansei de ser
“papai” dos coleguinhas músicos. Agora só toco sozinho”.
Como o senhor, um músico famoso, encara o fato de ser chamado de pai de
Taiguara?
“ Quando Taiguara começou a estudar, o pessoal dizia: olha, você viu aquele
garoto? É o filho de Ubirajara! Aí o Taiguara começou aquela ascensão
vertiginosa e eu passei a ser o pai de Taiguara. Mas nunca me fez mal nenhum.
Isso absolutamente nunca me incomodou, ao contrário. Sempre tive muito orgulho
dele e dos discos que ele gravou e em todos os discos sempre tem uma faixa em
que eu toco bandoneon.”
A que o senhor atribui o esquecimento de Taiguara, a menos de dois anos de sua
morte?
“Depois que Taiguara voltou a cantar, a mídia passou a ignorá-lo, como até hoje
o ignora. Houve aí uma rejeição, em relação ao comunismo, socialismo, enfim,
suas posições políticas. Taiguara criticava personalidades ainda vivas. Ele não
poupava nem a Rede Globo, que tanto o promoveu no início de sua carreira. Pode
ser que um dia venha um reconhecimento por tudo o que ele fez. Não sei se o
Brasil vai mudar, parece que está mudando para pior, mas um dia pode ser que
mude para melhor.”
Taiguara chegou a ser preso alguma vez?
“Uma vez ele sumiu no Rio. Eu estava em São Paulo. O avô dele me telefonou
comunicando seu desaparecimento há dois dias. Quando eu me preparava para
viajar, abandonando todos os meus compromissos, o avô me telefonou dizendo que
Taiguara já estava com ele. Suponho que foi uma prisão de advertência, como se
a polícia quisesse dar algum recado. Ele teve muitas dores de cabeça. Foi
muitas vezes desacatado.”
Ele teve alguma briga com Flávio Cavalcanti?
“Flávio era muito polêmico. Tinha aquele negócio de ouvir o disco e quebrá-lo
na frente das câmaras. Eu não gostava dele, mas ele nunca quebrou um disco de
Taiguara. Como Chacrinha e outros apresentadores, Flávio era um aproveitador, o
negócio dele era aparecer, virar notícia, aproveitando as novidades, os novos
valores, qualquer coisa. Isso acontece até hoje.”
E as mulheres de Taiguara, como o senhor analisa o fato dele ter sido casado
três vezes?
“Eu prezo qualquer uma delas. Foram companheiras de Taiguara, deram a ele a
felicidade que puderam dar, eu respeito as três. Taiguara gostava de mulheres
com quem pudesse conversar, que tivessem um conteúdo cultural. Se existe algum
desentendimento entre elas, não sei nem me interessa saber. Divergências e
desentendimentos são naturais entre seres humanos.”
Por que ele nasceu no Uruguai e não em Porto Alegre?
“São coisas da vida. A vida vai empurrando a gente. Pra onde o vento empurra a
gente vai. Como brasileiro, e tendo que optar por uma outra cidade eu fiquei
dividido: Rio de Janeiro, o grande centro político e social do país, ou Buenos
Aires, a terra do tango que eu tocava tão bem quanto eles. O que é que eu faço?
Em Buenos Aires eu teria grandes oportunidades. Poderia ficar rico tocando tango.
Mas o argentino na época, muito mais do que agora, não era muito simpático aos
brasileiros. E embora eu tocasse a música deles tão bem quanto eles, eu sentia
uma certa rejeição. Todas as vezes em que eu fui tocar lá, senti certa
discriminação, e sofria com isso. Daí fui para Montevidéu. Lá conheci a cantora
Olga Chalar, a mãe de Taiguara.”
Quem primeiro apoiou a carreira de Taiguara?
“Muita gente. Zimbo Trio, por exemplo. Eu me lembro que o primeiro disco de
Taiguara foi produzido praticamente por Luís Chaves, contrabaixista do Zimbo
Trio, que fez os arranjos. Foi a maior orquestra colocada em estúdio na época.
A maior quantidade de músicos numa gravação, uns 40. Taiguara não subiu
degraus. Jogaram-no para cima e ele ficou lá. Isso de certa forma não foi bom,
porque o bom é quando você galga os degraus um a um. A Philips deu todo apoio
que você possa imaginar, apesar dele ser apenas um menino que ainda estava na
escola. Era um acadêmico. Fazia Direito no Mackenzie. Eles vislumbraram ali um
artista. Neste primeiro disco, feito antes dos festivais, tem “Samba de copo na
mão”, o primeiro sucesso dele. Depois vieram “Hoje”, “Universo do teu Corpo” e
todos os que você já sabe.”
Qual sua participação nos discos de Taiguara?
“Eu nunca pressionei. Sempre esperei que ele tomasse a iniciativa de me chamar.
Em cada disco tenho uma participação, pelo menos em uma faixa, com meu
bandoneon. Mas eu tinha minha atividade isolada. Tive um conjunto durante 30
anos; cansei, e passei a trabalhar sozinho, razão pela qual acho que ainda vou
viver uns dez anos.”
De que exatamente o senhor se cansou?
“Com o decorrer dos tempos, aqueles músicos que eram dóceis, educados, com o
rock passaram a andar com camisa aberta no peito, medalha pendurada no pescoço,
brinco na orelha, barba por fazer, chinelo, aí o mundo começou a ficar muito
chato. Eu sou um conservador, sou de uma época em que os músicos se vestiam
tudo igual numa orquestra. Foi aí que eu desfiz o Ubirajara e seu Conjunto e
fiquei sozinho. Até hoje recebo convites para tocar, mas sempre toco sozinho.
Dá menos trabalho, não preciso reunir uma turma, esperar um e outro.”
Alguns shows inesquecíveis
O ano de 1973 foi produtivo para Taiguara. Ele alugou por Cr$ 1 mil nada menos
que um enorme convento no município do Embu, em São Paulo. O convento tinha 30
quartos e 10 banheiros. Lá se instalaram todos os componentes do conjunto, “A
Transa”: o próprio Taiguara, piano e órgão; Tibério, baixo acústico e elétrico;
Marlui, percussão, guitarra e violão; Jorginho Campos, bateria; Nivaldo
Ornelas, flauta (convidado especial).
À noite, o conjunto tocavam no Boteco, na capital paulista. O show chamava-se
“A Transa de Taiguara”, dirigido por Cláudio Mamberti.
Em sua carreira, Taiguara realizou muitos shows inesquecíveis. Relembrar todos
seria cansativo, mas citemos alguns, pelo menos os mais marcantes, começando
por “Primeiro Tempo 5X0”, sucesso garantido, tendo como produtores uma dupla de
grande sucesso e penetração naquele tumultuado 65 pós revolução. Antes,
Taiguara havia participado do Festival Mc-Dam de Jograis, com Vinícius,
Toquinho, Chico Buarque e outros. Com o Sambalança Trio cantara muitas noites
no João Sebastião Bar, em São Paulo.
Em 1970 fez um show baseado no LP Viagem, da Odeon, em que lançaria seus
primeiros grandes sucessos.
Três anos depois fez um dos mais importantes show de sua carreira, no Teatro
Ruth Escobar, em São Paulo, e na boate Pigalle, do Rio de Janeiro. O show teve
por título o LP então lançado: “Fotografias”, e tinha uma ficha técnica
impecável: Taiguara (piano, órgão, arranjos), Claudio Mamberti (direção),
Tibério e César (baixo acústico), Marlui (percussão, guitarra, violão),
Jorginho Campos (bateria), Nivaldo Ornelas (flauta, convidado especial),
Antônio Guerreiro e David Zingg (decoração e fotografia).
Claudio Mamberti, conhecido ator e diretor de teatro, utilizou técnicas
teatrais no espetáculo, incentivando os músicos a integrar o ambiente.
Taiguara, por sua vez, propunha-se a mostrar sua verdadeira imagem, que ele
supunha diferente daquela o tornara conhecido, conforme confessara a Ivan
Migliaccio (Folha de S. Paulo, 13 de junho de 1973): “Trabalhar em televisão é
o mesmo que ficar parado. Você tem razão. A gente não perde nem acrescenta nada
às coisas que faz, e além de tudo é desgastado pela máquina e pelos indivíduos,
desesperadamente.”
Taiguara vinha de dois anos de viagem e trouxera dos Estados Unidos o melhor
que havia em equipamentos de som. “Foi a primeira vez no Brasil que um artista
se apresentou com equipamentos de primeira linha”, conta o empresário Genildo
Fonseca, que cuidava de Taiguara. Segundo ele, foi a partir deste show que os
outros cantores, os outros empresários e as gravadoras passaram a utilizar
eletrônica nos shows em maior escala. A própria Gianinni, fabricante de
equipamentos musicais, passou a utilizar o som desse show como paradigma.
Taiguara estava entusiasmado com a novidade. E para evitar problemas com a
censura, optou por um show essencialmente musical, sem muito texto.
Viagem sem retorno aos ideais políticos
Não é tarefa fácil precisar exatamente quando Taiguara deixou de ser o cantor
romântico para tornar-se baluarte de conquistas sociais. Essa tendência,
conforme ele confessa em várias entrevistas e o próprio pai me confirmou, vem
do avô Glaciliano, que em sua simplicidade e à sua maneira, era um socialista
convicto. E Taiguara conviveu muito com o avô.
Um dos maiores sucessos de Taiguara, composto em 1968 e gravado em 1969, já
expressa sentimentos difusos, com sutis insinuações de revolta, tipo “hoje
trago em meu corpo as marcas do meu tempo/meu desespero a vida num momento/a
fossa, a fome, a flor, o fim do mundo”. Mas essa era uma explosão sentimental.
Com acesso a Vinicius desde os 13 anos de idade, Taiguara imitava Elvis Presley
na escola, por modismo, mas ouvia Dolores Duran, Sílvio Caldas, Luís Vieira,
por aí afora. Ao mesmo tempo, poeta sensível, forjava seu espírito na fonte do
romantismo exacerbado, misturando a fome da maioria da população com a sede de
justiça social.
Aos 17 ou 18 anos, ao passar a conviver mais estreitamente com Chico Buarque de
Holanda, Geraldo Vandré e outros expoentes da MPB, que na época sofriam
perseguição do governo militar, Taiguara provavelmente começou a fortalecer o
seu, digamos, espírito de luta. Mesmo assim, ainda cantou muita música romântica,
durante e após o período dos festivais.
As origens afro e ameríndeas
Uma das características da personalidade de Taiguara era sua preocupação com as
raízes do povo brasileiro. Durante muitos anos, paralelamente à sua carreira
artística, Taiguara dedicou-se ao estudo do homem, especialmente às raízes afro
e ameríndeas, tendo como um de seus “orientadores” ou “inspiradores” figuras
como o sociólogo Florestan Fernandes, o economista Caio Prado Júnior e
principalmente o político Luís Carlos Prestes, em quem se espelhava a quem
ouvia com grande assiduidade.
Um de seus interlocutores mais freqüentes foi o professor Celso Prudente,
diretor do Pólo Cultural de São Paulo (leia-se Parque Anhembi), onde são
realizados os desfiles das escolas de samba no carnaval e outros eventos
importantes da capital paulista. Celso Prudente já foi cotado para o cargo de
Secretário Municipal de Cultura, que somente não ocupou por injunções políticas
conhecidas. Como se sabe, o ex-prefeito Paulo Maluf recomendou ao prefeito Celso
Pita a manutenção de Rodolfo Konder, cujo trabalho interessava porque abria uma
espécie de fenda nas correntes de esquerda, sabidamente antimalufistas.
Paulistano, Celso Prudente morou durante muitos anos no Rio de Janeiro, atraído
pelo caldeirão cultural que fervilhava na antiga capital federal. Era o Rio de
Machado de Assis, de Pixinguinha, das escolas de samba e de tantas
manifestações artísticas que interessava ao professor e estudioso.
Nesse período conviveu intensamente com Taiguara, introduzindo-o nos assuntos
sócio-antropológicos. Em contato permanente com o cantor, discutia também as
teorias do marxismo-leninismo.
“O que diferenciava Taiguara dos outros cantores era exatamente essa
preocupação com o social, que ele deixava transparecer nitidamente em suas
poesias, em suas apresentações, na mesa do bar ou em reuniões de qualquer
tipo”, conta Celso, que ainda se lembra de um episódio marcante na carreira de
Taiguara. Foi quando os mais famosos compositores brasileiros se reuniram no
Rio de Janeiro para discutir as principais questões da categoria, especialmente
direitos autorais e censura. Taiguara fechou o tempo com um discurso radical em
defesa das liberdades democráticas e sobre o papel do compositor enquanto ser
pensante e como ser político. Celso também interveio, colocando-se ao lado de
Taiguara, mas se dedicando aos aspectos relacionados com as raízes culturais do
povo brasileiro, principalmente às raízes afro e ameríndeas. Taiguara estava
afinado em tudo com as idéias de Celso, que durante muito tempo foi seu grande
amigo e uma espécie de guru.
Celso chegou a iniciar um filme sobre a vida e a obra de Taiguara, com a
colaboração de amigos comuns. O filme ainda está nos planos dele e deve sair
oportunamente. Salvo se suas novas atividades como diretor da União Americana
de Carnaval, que assumiu dia 1o de março de 1998 juntamente com Ricardo Cravo
Albim, atrapalhe seus planos. Em sua Enciclopédia da Música Popular Brasileira,
edição de luxo da Funarte, Ricardo, crítico de música do Jornal do Brasil
durante muitos anos e possuidor de um dos maiores arquivos particulares de MPB,
situa Taigura como um dos grandes cantores brasileiros. Já o cinema fez parte
das atividades multiprofissionais de Taiguara, conforme veremos a seguir.
MORTE SEM MISTÉRIO
Não houve nenhum mistério em torno de sua morte. Foi uma morte anunciada. Mesmo
assim, como acontece ainda hoje com Tancredo Neves, Castelo Branco, Marcos
Freire, Juscelino Kubtscheck e outros grandes nomes, ainda há quem acredite em
boatos. Há quem pergunte de que morreu mesmo Taiguara.
Como ele não cuidava da saúde? Sua alimentação era racional? Não há registro de
abusos de drogas e álcool. Havia um médico de família, quem?
O desespero de quem não queria morrer foi acompanhado de perto por Ana
Lasevicius, cujo depoimento vem a seguir.
Þ DEPOIMENTOS E ENTREVISTAS
Um caso de amor quase à primeira vista
O encontro de Ana Lasevicius com Taiguara seria uma história de amor trivial,
não fossem algumas peculiaridades. Eles não se conheciam até o dia em que se encontraram
nos corredores da Rádio e TV Bandeirantes, em São Paulo, no programa Novos
Talentos, apresentado por Caçulinha, em 1985. Taiguara estava ali também para
acertar detalhes de um show que faria no Auditório Elis Regina, do Pólo de Arte
Anhembi, em São Paulo. Era o primeiro show após um jejum de “13 Outubros”.
Ana acompanhava uma cunhada, que era cantora e ia gravar um disco. Não era
empresária dela, apenas a acompanhava, ajudando-a no que fosse possível. Como
estudante de Comunicação, era uma interessada pelas atividades artísticas e
seus bastidores. Sua cunhada (nome dela) participava das eliminatórias do
programa de Caçulinha, que não era exatamente um programa de calouros, pois
seus concorrentes já tinham alguma experiência. Era um programa que julgava e
premiava cantores, atores, locutores e apresentadores, os quais teriam como
prêmio o exercício de suas respectivas habilidades. Era uma espécie de parada
de sucesso que selecionava os melhores. O melhor cantor, naturalmente, grava um
disco, como chegou a acontecer com a cunhada de Ana.
Por coincidência, ela participara do tal programa cantando exatamente
composições de Taiguara (que músicas?).
Ana conhecia a música de Taiguara, de quem na verdade era fã. Mas não o
conhecia pessoalmente. Ouvia seus discos, na verdade uma coletânea de seus
sucessos, que não tinha fotos dele. Por isso, conversou com ele alguns minutos
sem saber quem era o seu interlocutor. ZNão tinha importância, eram duas
pessoas matando o tempo numa sala de espera. Até que sua cunhada percebeu e
avisou que era o Taiguara, o compositor das músicas que ela defendia no
programa.
Ana fez amizade com ele e chegou a ir ao show do Anhembi, que a TV Bandeirantes
gravou na íntegra e mostrou algumas vezes, em datas nobres. Mas a amizade entre
os dois só se aprofundaria um ano depois, quando Taiguara voltou a São Paulo
para se apresentar no Teatro Maksud. Dois ou três meses depois de um namoro
apaixonado, houve o casamento no Uruguai, em julho de 1987. O casamento tinha
de ser fora do país porque no Brasil Taiguara era casado com Geisa.
Sua família não aprovava o casamento. Primeiro porque a decisão tinha sido
muito rápida. Segundo pelo que rolava nos bastidores. Taiguara era tido como
meio doido, estava no ostracismo, era confundido com hippie, maconheiro, coisas
do tipo. Mesmo assim, foram em frente. Taiguara enfrentou corajosamente a
família de Ana e comunicou pessoalmente aos pais dela a intenção de se casarem.
Foi um susto. Mas pouco a pouco a família apoiaria a união, especialmente
depois de conhecer melhor o cantor, de resto uma figura inteligente e
cativante.
Após o casamento, os dois foram morar na rua Venâncio Flores, esquina com a rua
Ataufo Paiva, no Leblon. O apartamento, alugado, ficava em cima do Luna,
restaurante freqüentado por artistas e intelectuais. Uma curiosidade: como a
cozinha era muito pequena e Ana não era exatamente uma mulher de prendas
domésticas, o pessoal do Luna preparava as sopinhas do Guarani, o único filho
do casal, nascido em 1988.
O apartamento era ao mesmo tempo estúdio, escritório e dormitório, lembra Ana,
que também fazia refeições no Luna, com Taiguara e Guarani, naturalmente. Foi
um período de muito trabalho e pouco dinheiro. Afinal, Taiguara estivera
afastado muito tempo. Estava retomando a vida artística e deu a sorte de
encontrar uma companheira dedicada, que aos 25 anos enfrentara a própria
família para dedicar-se a um artista relativamente apagado, perseguido e sem
dinheiro.
A carreira estava sendo retomada. Mesmo sem contar com os festivais, Taiguara
tinha um público muito fiel. “Nossa dificuldade era com a mídia”, lembra Ana,
que tinha dificuldades em divulgar os shows nos jornais e em emissora de rádio.
Eles temiam dar espaço ao cantor, porque sabiam que entraria em cena o
político, com seu discurso anticapitalista. “Ele não separava as coisas”, conta
Ana, e sempre que lhe abriam uma brecha, lembrava os aspectos políticos de suas
letras. Antes de qualquer apresentação, ele se preocupava em ouvir, em ondas
curtas, as notícias da França, de Portugal, de Moscou ou da BBC de Londres,
para informar-se sobre a situação dos povos do mundo. Aí, dava o seu recado,
fresquinho, falando coisas que não estava em nenhum jornal, que ele acaba de
ouvir pelo rádio.
Perguntei a Ana por que Taiguara pulou do sucesso dos festivais para o meio
esquecimento que praticamente amaldiçoou sua carreira. Ela foi franca e
objetiva:
“Com suas atitudes às vezes radicais, mas sempre coerentes, Taiguara conquistou
alguns inimigos e foi muitas vezes perseguido e boicotado. Mas em nenhum momento
ele se queixou disso. Para ele, o mais importante era contribuir para o
desenvolvimento de uma sociedade justa e democrática. Em sua vida ele perdeu
muito, perdeu tudo, mas se manteve fiel a seus princípios e quando reclamou foi
das desigualdades e da má distribuição da riqueza entre os homens, não apenas
no Brasil mas em todo o mundo.”
Ana colaborava com o artista e com o homem utilizando os conhecimentos (poucos,
é verdade) adquiridos durante dois anos de estudos de Comunicação nas
Faculdades Anhembi-Morumbi. Na verdade, admite que aprendeu mesmo foi na
prática. Era produtora, cenógrafa, figurinista, relações públicas, fotógrafa,
divulgadora - fazia de tudo, sempre com o objetivo de ajudar o marido. “Só não
cantava nem tocava nada”, afirma. Teve grande participação em dois memoráveis
shows de Taiguara: no Canecão e no Teatro João Caetano, quando enfrentou todos
os problemas comuns desse tipo de atividade: som alugado, luz em gambiarras,
água, partitura e cavaletes para os músicos, passar o som, ensaios... Afinal,
diz ela, na hora o público quer que tudo funcione, não importa o trabalho que
tenha dado.
Ana teve também papel importantíssimo nos últimos anos de vida do cantor, que
sofria de câncer na bexiga. Acumulava as funções de produtora com as de mulher,
mãe e enfermeira. Até o fim.
LULA BRANCO MARTINS
No dia seguinte à morte de Taiguara, um dos críticos de música do Jornal do
Brasil, Lula Branco Martins, escreveu:
“Eu gosto do Taiguara. Mas isso sempre foi uma coisa meio chocante. Em todas as
rodas que frequentei, em todos os grupos de amigos que tive e mesmo aqui no JB,
entre os críticos de música, poucos aceitavam o fato de eu gostar do Taiguara.
Ele era mais ou menos um Oswaldo Montenegro de sua época, eterno
incompreendido. A esquerda o considerava muito romântico e a direita,
subversivo demais. Nunca foi chique gostar de suas letras e melodias.”
Mas isso não impediu que ao criticar um show realizado no Teatro João Caetano,
dois anos antes de sua morte, Lula escrevesse que “seu discurso estava meio
demodê”. Comentando sua própria crítica, acrescentava: “Tive que aturar longos
minutos de falação anticapitalista - a meu ver, Taiguara foi se tornando, com o
passar das décadas, uma figura folclórica. Aos poucos, passei a ter vergonha de
contar em público que, na juventude, dando meus primeiros passos no violão,
cheguei várias vezes a virar a antena da TV para fazê-la de pedestal de
microfone e, assim, poder imitar Taiguara, escondido no quarto, altas horas da
madrugada.”
A tal crítica do show foi publicada no dia 11 de agosto de 1994 e sua parte
mais contundente é a seguinte: “... Mas o show tem muitas falhas. A voz de
Taiguara, por exemplo, já não é a mesma dos prolongados agudos de suas
primeiras gravações e a performance em Samba do amor denuncia isso. E o
desenvolvimento do espetáculo é emperrado pelo discurso do cidadão Taiguara,
que jorra frases como “no ardor quente das paixões eu me apaixonei por um país
chamado Cuba”, análises como “o bondinho de Santa Teresa está quebrado por
causa do sistema” e até confissões como:
“Já dancei muito rock’n’roll. Como é boa a alienação. Todos têm o direito de se
alienar. Mas ao mesmo tempo não é bom abrir mão da consciência”.
Quem for ao João Caetano esperando reencontrar antigos sucesso de Taiguara vai
perder a viagem, dizia o jornalista, acrescentando: “Ele não canta Modinha,
Hoje, Carne e Osso, Que as crianças cantem livres e Helena, Helena. Quem quiser
saber histórias de sua passagem pela Tanzânia e por Angola e ouvir seus pouco
inspirados comentários políticos, vai gostar mais. Quem quer?”
Lula Branco Martins conta que foi procurado por Taiguara no dia seguinte, mas
não foi encontrado. Uma pena, diz ele, pois queria contar que chegou a imitá-lo
na juventude, antes de envergonhar-se de contar aos amigos que era admirador
dele.
TÁRIK DE SOUZA
No mesmo dia e jornal, outro crítico, Tárik de Souza, escreveu: “Taiguara foi
empurrado para o gueto de sua opção política radical, na corrente prestista de
esquerda. Como sempre acontece no Brasil, após a morte do homem é possível que
o artista seja reavaliado”.
SÉRGIO BITTENCOURT
“Taiguara tem o dom de complicar a vida e simplificar as canções”.
FREDERICO ROCHA
Para o grande público, um desconhecido. O médico psiquiatra Frederico Rocha foi
dirigente nacional do PCB durante alguns anos. Frequentou a casa de Prestes e
todos os lugares frequentados pelos comunistas. Conheceu Taiguara nos bares de
Santa Tereza e Lapa, nos quais conversou muitas vezes com o cantor,
naturalmente sobre seu assunto predileto: marxismo-leninismo. A preocupação com
o social era a pauta do dirigente Fred, que nas horas vagas era boêmio e poeta.
Em sua constante busca de expressão artística, Taiguara se interessa muito
pelos diálogos em torno da relação entre política e arte. E Fred, como poeta,
era naturalmente propenso a esse tipo de diálogo. Ainda hoje o é, mas se queixa
de não ter mais interlocutores como Taiguara.
Coincidência honrosa para mim: a agenda de Fred, não tão famosa quanto a de
Prestes, que tanto deu o que falar durante certo tempo, tinha na letra “T” dois
endereços e telefones: Taiguara e Tiné. A diferença é que eu não tinha, como
Fred, a mesma capacidade de diálogo, o mesmo nível de informação sobre marxismo
e arte. Lera com muito interesse e curiosidade livros, revistas e jornais sobre
o assunto, como a “Revista da Civilização Brasileira”, o “Para Todos”, o
“Jornal de Letras”, “Leia Livros” e toda e qualquer publicação ligada à
literatura. Mas não me considerava culto o bastante para participar de debates
verbais, nem mesmo em mesa de bar, onde sabe mais quem fala mais.
Fred considera Taiguara um bom poeta, um bom compositor e sobretudo e um
teórico bastante lúcido do processo revolucionário.
FRASES MARCANTES
Sobre Ronaldo Bôscoli, quando criticou a aflição e a ansiedade de Taiguara:
- O Bôscoli, coitado, vive frustrado, amargurado, por não morar em Nova Iorque.
Anda pela Zona Sul do Rio de Janeiro pedindo a Deus que um raio desça do céu e
transforme o Rio em Nova Iorque. Então, como ele não consegue realizar esse
desejo, vive de porre por aí, dizendo coisas que não interessam a ninguém.
Sobre a censura, que o forçou ao exílio voluntário:
- Parei de cantar em público em abril de 74. Nessa época, eu já tinha 44
músicas vetadas pela Censura Federal. Percebi, então, que não dava pra continuar.
E jurei: só volto a cantar quando o poder popular assumir o governo em meu
País.
Sobre arte e política, Taiguara gostava de citar o líder africano Amílcar
Cabral:
- A arte é um instrumento na luta pela liberdade.
Sobre análise, era pretensioso:
- O sujeito que recebe críticas do proletariado não precisa de análise. Eu me
lembro da Nara Leão antes daquela famosa psicanálise, tão divulgada pela
revista O Cruzeiro. Ela era uma pessoa combativa, participava do CPC, Grupo
Opinião, etc. Depois de cinco anos de análise, afirmou que “tinha se
encontrado”: gravou Erasmo e Roberto.
Sobre “Universo do teu corpo”, cuja musa inspiradora ele sempre se recusava a
revelar:
- Tem que ser retificados os primeiros versos, porque eu não desisto e sempre
existiu o amanhã que eu persegui.
Sobre a falta de memória:
“Ainda estamos sem memória. Somos um país desmemoriado. Nossos artistas estão
cantando para os militares, para as multinacionais. E isso pra mim é falta de
memória. Duvido que esses artistas lembrem hoje porque entraram nessa”.
Frases ditadas a Marcos Baby Durães e Sabá, programa “Roda de Sábado”, da Jovem
Pan, em 25 de outubro de 1986:
- A gente tem que trabalhar hoje para organizar a sociedade e não deixar que o
imperialismo dirija a sociedade para a guerra nuclear, para o extermínio, para
o aumento da concentração do capital.
Sobre a distribuição da riqueza, na mesma entrevista:
- O que está errado no nosso País é a distribuição da riqueza, é a miséria
crescente a que vai chegando a nossa população.
- A gente pensa que o povo brasileiro não é capaz de lutar, de levar um ideal à
frente, é alienado, indolente. A gente pensa tudo errado do nosso povo. Meu
povo não é assim.
Explica que a mentira das universidades nos levou a isso, e sentencia: Essa
mentira cultural é que nos mantém nessa ilusão!
Þ TAIGUARA E A INTERNET
A presença de Taiguara na rede mundial dá inveja a qualquer ídolo. Ao todo, são 75 sites. Obviamente, nem todos
são exclusivamente sobre o cantor, mas é o que aparece quando se digita o nome
dele nos sistemas de busca.
Uma curiosidade: a maioria desses sites foram feitos espontâneamente por
admiradores, sem qualquer ônus para a família; outros foram feitos por empresas
que se utilizam da Internet para comercializar seus produtos. A lista foi copiada
no dia 28 de fevereiro de 1998. A data é importante pois a cada momento esses
sites sofrem alterações. Para os viciados em Internet, um prato cheio. A
presença de Taiguara nas páginas da WWW constituem importante demonstração da
importância que ele teve para a MPB, com grande repercussão internacional. O
leitor interessado poderá aprofundar sua pesquisa nos diversos sistemas.
Þ Discografia
Meus Momentos
1.Gente Humilde
2.Hoje
3.Viagem
4.Universo No Teu Corpo
5.Modinha
6.Helena, Helena, Helena
7.Prelúdio Número 2 (Paz Do Meu
Amor)
8.Teu Sonho Não Acabou
9.O Velho E O Novo
10.Que As Crianças Cantem Livres
11.Berço de Marcela
12.Momento De Amor
13.Castigo
14.Piano E Viola
15.Carne e Osso
16.Amanda
Gente Humilde
Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar
Igual a como quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem, vindo de trem de algum lugar
E ai me dá como uma inveja dessa gente
Que vai em frente sem nem ter com quem contar
São casas simples com cadeiras na calçada
E na fachada escrito em cima que é um lar
Pela varanda flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar
E ai me dá uma tristeza no meu peito
Feito um despeito de eu não ter como lutar
E eu que não creio peço a Deus por minha gente
É gente humilde, que vontade de chorar
Hoje
Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo
Hoje
Trago no olhar imagens distorcidas
Pois viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos
Mas hoje,
As minhas mãos enfraquecidas e vazias
Procuram nuas pelas luas, pelas ruas
Na solidão das noites frias por você
Hoje
Homens sem medo aportam no futuro
Eu tenho medo acordo e te procuro
Meu quarto escuro é inerte como a morte
Hoje
Homens de aço esperam da ciência
Eu desespero e abraço a tua ausência
Que é o que me resta, vivo em minha sorte
Ah, sorte
Eu não queria a juventude assim perdida
Eu não queria andar morrendo pela vida
Eu não queria amar assim
Como eu te amei
Viagem
Vai, abandona a morte em vida em que hoje estás
Há um lugar onde esta angústia se desfaz
E o veneno e a solidão mudam de cor
Vai indo o amor
Vai, recupera a paz perdida e as ilusões
Não espera vir a vida às tuas mãos
Faz em fera a flor ferida e vai lutar
Pro amor voltar
Vai, faz de um corpo de mulher estrada e sol
Te faz amante, faz teu peito errante
Acreditar que amanheceu
Vai, corpo inteiro mergulhar no teu amor
E esse momento, vai ser teu momento
O mundo inteiro vai ser teu, teu, teu...
Universo No Teu Corpo
Eu desisto,
Não existe essa manhã que eu perseguia
Um lugar que me dê trégua ou me sorria
Uma gente que não viva só pra si
Só encontro,
Gente amarga mergulhada no passado
Procurando repartir seu mundo errado
Nessa vida sem amor que eu aprendi
Por uns velhos vãos motivos
Somos cegos e cativos
No deserto do universo sem amor
É por isso que eu preciso
De você, como eu preciso
Não me deixe um só minuto sem amor
Vem comigo,
Meu pedaço de universo é no teu corpo
Eu te abraço, corpo imerso no teu corpo
E em teus braços se unem versos à canção
Em que eu digo,
Que estou morto pra este mundo antigo
Que meu porto, meu destino, meu abrigo
São teu corpo amante, amigo em minhas mãos.
Modinha
Olho a rosa na janela
Sonho um sonho pequenino
Se eu pudesse ser menino
Eu roubava aquela rosa
E ofertava todo prosa
À primeira namorada
E neste pouco ou quase nada
Eu dizia o meu amor
Olha o sol findando lento
Sonho um sonho de adulto
Minha voz na voz do vento
Indo em busca do teu vulto
E o meu versos em pedaços
Só querendo o teu perdão
Eu me perco nos teus passos
E me encontro na canção
Ai, amor eu vou morrer
Buscando o teu amor
Eu vou morrer de tanto amor.
Helena, Helena, Helena
Talvez um dia, por descuido ou fantasia
Helena, Helena, Helena
Nos meus braços debruçou
Foi por encanto, ou desencanto
Ou até mesmo por meu canto, por meu pranto
Ou foi por sexo, ou viu em mim o seu reflexo
Ou quem sabe uma aventura, até mesmo uma procura
Pra encontrar um grande amor
Mas hoje eu sei que um dia, por faltar telefonema
Helena, Helena, Helena
Nos meus braços pernoitou
Foi por acaso, por um caso
Ou até mesmo por costume, pra sentir o meu perfume
Dar amor por um programa, dar seu corpo num programa
Hoje vai e nem me chama
Um adeus é o que deixou
Talvez um dia, por esperança, ou ser criança
Deixei Helena, Helena
Com seus braços me guiar
Fui sem destino, tão menino
E hoje eu vejo o desatino, estou perdido numa estrada
Peço ajuda a quem passa, tanto amor pra dar de graça
Todo mundo acha graça deste fim que me levou
Maria Helena, e seus homens de renome
Entre eles fez seu nome, e entre eles se elevou
Foi sem amor, foi sem pudor
Mas hoje entendo o jeito desses, pra salvar seus interesses
Dar seu corpo custa nada e com o olhar de apaixonada
Em suas rodas elevadas seu destino assegurou
Talvez um dia, por desejo de poesia
Helena, Helena, Helena
Talvez queira dar a mão
Talvez tão tarde, até em vão
Quem saiba eu tenha um rumo à vista
Ou quem sabe eu nem exista
Ofereço este meu canto a qualquer preço, a qualquer pranto
Não quero amor, não se discute
Eu procuro quem me escute.
Prelúdio No 2 (Paz Do Meu Amor)
Você é isso, uma beleza imensa
Toda recompensa de um amor sem fim
Você é isso, uma nuvem calma
No céu de minh’alma , é ternura em fim
Você é isso, estrela matutina
Luz que descortina um mundo encantador
Você é isso, parto de ternura
Lágrima que é pura, paz do meu amor
Teu Sonho Não Acabou
Hoje a minha pele já não tem cor
Vivo a minha vida seja onde for
Hoje entrei na dança e não vou sair
Vem que eu sou criança não sei fingir
Eu preciso, eu preciso de você
Ah! Eu preciso, eu preciso, eu preciso muito de você
Lá onde eu estive o sonho acabou
Cá onde eu te encontro só começou
Lá colhi uma estrela pra te trazer
Bebe o brilho dela até entender
Que eu preciso...
Só feche o seu livro quem já aprendeu
Só peça outro amor quem já deu o seu
Quem não soube a sombra, não sabe a luz
Vem não perde o amor de quem te conduz
Eu preciso...
Nós precisamos, precisamos sim
Você de mim, eu de você.
O Velho E O Novo
Deixa o velho em paz
Com as suas histórias de um tempo bom
Quanto bem lhe faz
Murmurar memórias num mesmo tom
A sua cantiga, revive a vida
Que já se esvai
Uma velha amiga, outra velha intriga
E um dia a mais
Vão nascendo as rugas
Morrendo as fugas a as ilusões
Tateando as pregas
Se deixa entregue às recordações
Em seu dorso farto
Carrega o fardo de caracol
Mas espera atento
Que o céu cinzento lhe traga o sol
Ele sabe o mundo
O saber profundo de quem se vai
O que não faria
Pudesse um dia voltar atrás
Range o velho barco
Lamento amargo do que não fez
E o futuro espelha
Esse mesmo velho que são vocês
Que As Crianças Cantem Livres
O tempo passa e atravessa as avenidas
E o fruto cresce, pesa e enverga o velho pé
E o vento forte quebras as telhas e vidraças
E o livro sábio deixa em branco o que não é
Pode não ser essa mulher o que te falta
Pode não ser esse calor o que faz mal
Pode não ser essa gravata o que sufoca
Ou essa falta de dinheiro que é fatal
Vê como um fogo brando funde um ferro duro
Vê como o asfalto é teu jardim se você crê
Que há sol nascente avermelhando o céu escuro
Chamando os homens pro seu tempo de viver
E que as crianças cantem livres sobre os muros
E ensinem sonho ao que não pode amar sem dor
E que o passado abra os presentes pro futuro
Que não dormiu e preparou o amanhecer...
Berço De Marcela
Um dia Marcela se achou e se deu
Seu corpo sem vida, me amou e foi meu
Das dores vencidas nasceu a mulher
Que sabe porque, que se abre e se vê
E hoje me faz viver
E hoje me faz saber
Que os homens, por pressa, por medo de amar
Passaram por ela sem nada encontrar
Levaram consigo o engano de quem não viu
Nem sabe do que fugiu
Da estrada, da estrela
Ficaram comigo seus medos se dando aos meus
No berço onde renasceu Marcela.
Momento De Amor
Neném, eu percebi quando te amei
Teu medo foi maior que o teu amor, neném
Neném, abre o teu peito e diz pra mim
Tudo que te faz temer assim
Neném, dor que se guarda fere mais
Faz medo, desespera e esfria o amor, neném
Meu bem, faz no leito um sol pra nós
Faz da tua treva o amanhecer
Vida é só uma estrada e vai levar
Aonde o teu amor puder
Vida é teu momento de entregar
É dentro de você, mulher
Neném, agora sim num corpo só
Os nossos corpos sós vão se encontrar no amor
Amor, agora sim eu vou te amar
Mais do que te amar vou te saber
Assim, meu colo acolhe a tua mão
E colhe em tua mão o tato bom do amor
Assim, meu braço estreita o nosso amor
Deita sobre o teu o meu viver
Quero, e esse é o momento de alcançar
Vir junto e mergulhar no amor
Quero, deixar no mundo do teu ser
No fundo do teu ser, o amor
Comigo agora, vem, vem, vem neném
Castigo
A gente briga,
Diz tanta coisa que não quer dizer
Briga pensando que não vai sofrer
Que não faz mal se tudo terminar
Um belo dia,
A gente entende que ficou sozinho
Vem a vontade de chorar baixinho
Vem o desejo triste de voltar
Você se lembra?
Foi isso mesmo que se deu comigo
Eu tive orgulho e tenho por castigo
A vida inteira pra me arrepender
Se eu soubesse
Naquele dia o que sei agora
Eu não seria este ser que chora
Eu não teria perdido você
Piano E Viola
Olhando um dia de chuva
Vi que mais triste era eu
Que sem estrela e sem lua
Te procurava no céu
Fiz do piano a viola
Fiz de mim mesmo um amigo
Fiz da verdade uma história
Fiz do meu som meu abrigo
Quem canta fala consigo
Quem faz o amor nunca quer ferir
Quem não fere vive tranqüilo
Vê muita gente sorrir
E quem não estiver do seu lado
A quem ama e quer ser feliz
Não diga que não se importa
Diga só o que o amor lhe diz
Essa mentira é uma espuma
Que se desmancha no ar
E deixa n’água um espelho
Pra você se ver chorar
Sorriso bom só de dentro
Ninguém é bom sendo o que não é
Eu pra ser feliz com mentira
É melhor que eu chore com fé.
Carne E Osso
Eu quero sim
Eu quero coisas novas
Mas o que eu procuro mesmo são mais vidas
Eu grito sim
Mas grito meu lirismo
E o meu grito vai sanar minhas feridas
E a música e a mística
Aplicam sangue novo no meu ser
Calo a minha dor
E o lúcido, e o válido e o sólido
Vão matar você que evita o seu amor
Por isso eu vou
Trazer você comigo
Programar o amor em seus computadores
Vou mais além
Eu morro mas consigo
Germinar a minha flor em seus rancores
Nem dúvidas, nem dívidas
Jamais vão destruir a minha flor dentro de você
Que cérebro, que máquina?
Conseguem fazer mais que um grande amor dentro de você
Saiba quem agride a minha lira
Quanto mais ferida, mais diz o que sente
Ainda vou ouvir você dizer pra mim, eu amo sim
Sou carne, sou osso, sou gente
Amanda
Amanda,
Vencido em meu castigo
Eu trago a paz comigo
De volta pra ficar
Amanda
Recolhe os meus pedaços
Me acolhe nos teus braços
Toma o espaço desta dor e o teu lugar
Amanda
Perdi pela viagem
As forças, a coragem
A imagem do que eu sou
E o que eu sou
O que escondeu a única verdade
O que perdeu a última metade
Amanda, o que partiu e desertou
Te amando
Vou esquecer a inútil liberdade
Que eu sonhei ver nas luzes da cidade
Amanda, vou te enfeitar de tanto amor
Þ Fontes consultadas:
Þ
Livros:
“Chega de Saudade”, Ruy Castro, Cia. De Letras, 1994
“Enciclopédia da Música Popular Brasileira”, Ricardo Cravo Albim, Funarte, 1997
“Toquinho, 30 anos de Música”, João Pecci Filho, Maltese, 1996
“Ler, Pensar e Escrever”, Gabriel Perissé, Editora Arte e Ciência, 1996
“O Cavaleiro da Esperança”, 34a. Edição, Jorge Amado, Editora Record
Revistas: Amiga, Contigo, Manchete, Veja, Fatos e Fotos
Jornais: Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo, O Globo,
Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa
Arquivos: TV Cultura, Rádio Jovem Pan, Editora Abril/Departamento de
Documentação, Funarte, Acervo do pesquisador Assis Ângelo.
COMO COMEÇOU ESSA HISTÓRIA
A idéia de tentar resgatar a imagem de Taiguara surgiu do boom de biografias
que vem proliferando nos últimos anos. Ruy Guerra com Nelson Rodrigues e Mané
Garrincha, Regina Echeverria com Elis Regina, Assis Ângelo com Luís Gonzaga,
José Nêumanne Pinto com Luiza Erundina, Jon Lee Anderson com Che Guevara,
Fernando Moraes com Olga e Chateaubriand, Jorge Caldeira com Visconde de Mauá -
são apenas alguns exemplos de lançamentos recentes, avidamente disputados por
compradores num país sem tradição de leitura mas que vem recebendo certo
impulso através de faculdades e jornais.
Saíram também biografias de Cazuza - Só as Mães São Felizes - por Lucinha Araújo
e Regina
Echeverria, de Elza Soares - Cantando Para Não Enlouquecer - de José Louzeiro e Lenin Novaes, de políticos e de vários outros artistas. O aparecimento, particularmente em São Paulo, de livrarias tipo supermercado, estimulou a venda de livros como se fossem legumes e verduras. Não se sabe se tais livros vão para a cabeceira do comprador ou se viram objeto de decoração, mas com certeza o lançamento festivo de novos livros se transformou numa exigência quase diária das grandes livrarias, que desencadearam uma série de megaeventos - lançamentos de livros com coquetéis, shows, desfiles moda, qualquer coisa para chamar a atenção. Em sua edição no 43, de 27 de outubro de 1997, a revista Veja São Paulo, carinhosamente chamada de Vejinha, classifica como Oba-Oba das Letras o lançamento freqüente de novos livros, sempre com vinho branco à vontade e noite de autógrafos.
Nasceu, por outro lado, saudável concorrência entre editores, contribuindo
ainda mais para o surgimento de novidades editoriais, discos, filmes e outras
manifestações artísticas. Em 1997 houve até o lançamento de um livro com o
roteiro de um filme. Mais de um, aliás.
É evidente que dessa enxurrada de livros nem tudo vale a pena ser lido. Há
trinta anos em Paris fazendo psicanálise, o médico brasileiro Paulo Fernando de
Queiroz Siqueira orgulhava-se de quase nunca ter lido uma biografia. Prefere o
coletivo. Acha perda de tempo dedicar atenção a um indivíduo, quando toda uma
sociedade está a exigir interpretação. Mesmo em seu trabalho de psicanálise,
prefere os grupos.
Tal posicionamento radical e isolado não impede que o fenômeno continue
proliferando, inclusive e principalmente nos outros países. As figuras
brasileiras inexistem no primeiro mundo, onde Paulo Coelho é senhor absoluto
das vendas. Aqui, ilustres desconhecidos como o médico Matinas Suzuki, pai do
jornalista do mesmo nome que apresentava o programa Roda Viva, da TV Cultura,
aventuram-se lançando a história de suas vidas. E às vezes certas memórias
viram best-sellers.
Por trás de toda biografia há um fanático, ou uma viúva. Às vezes mais de um
fanático e mais de uma viúva. Todos querem reconstituir a imagem de seu ídolo à
sua moda, transformando-o em herói ou vilão, conforme o amor ou o ódio que
restou da convivência. Não é este o caso.
Um artista é amado por muitas mulheres. E ama muitas mulheres. Ama o ser
humano. Ama o mundo. Daí ser difícil conciliar tanto amor e sujeitar-se às
amarras de um casamento convencional. Taiguara amou pelo menos três mulheres, e
provavelmente achou pouco. Nesse sentido, imitou um de seus ídolos, Vinícius de
Moraes, e Toquinho (antes do casamento), que não podiam ver um rabo de saia.
Resgatar sua história é pois uma necessidade, não apenas diante da avalanche de
biografias que vem surgindo, mas principalmente devido a importância de sua
obra, esquecida pela mídia. Fique claro, porém, que não se trata de uma
biografia completa. Tudo o que consegui reunir sobre Taiguara é pouco para
descrever com precisão sua trajetória.
Infelizmente, a pressão das gravadoras sobre os disque-jóqueis para tocar
determinados lançamentos continua sendo um rolo compressor muito mais pesado do
que o valor artístico dos discos. A imposição das músicas internacionais
antecedeu a globalização que hoje predomina no comércio em geral. Talvez por
essa razão os admiradores de suas músicas não consigam escutá-las em emissoras
de rádio, tampouco em tevês. Nem o lançamento, em novembro de 1998, do
primoroso disco “Claudya canta Taiguara” conseguiu reerguer o prestígio do
ex-protegido da Rede Globo.
A marca da coerência
A marca registrada da vida de Taiguara foi a coerência, pois ele se manteve
fiel até o fim à ideologia que abraçou. Foi classificado de stalinista, por
causa de seu posicionamento radical de esquerda e escreveu sobre arte popular
no jornal “Hora do Povo”, do Movimento Revolucionário 8 de Outubro - MR-8. Mas
ele não era radical apenas politicamente. Era exigente também consigo mesmo e
com suas composições, arranjos e apresentações. Exigia disciplina de seus
acompanhantes, fato confirmado por todos os que presenciaram os ensaios de suas
gravações e de seus shows.
“Ele era implacável nos ensaios, mas fora disso era de uma ternura só, como nas
canções”, conta Ana Lasevicius, terceira e última esposa, produtora de seus
últimos shows e companheira fiel dos últimos oito anos da vida que matou
Taiguara.
Um radical à moda de Ernesto Che Guevara, mas exclusivamente quanto ao dito que
virou refrão e chavão das esquerdas: Hay que endurecer, pero sin perder la
ternura jamais. Sim, porque ao que consta, Taiguara era incapaz de pegar numa
arma. Poder-se-ia dizer que ele era um guerrilheiro da palavra, ou um
cancioneiro da esperança. Suas armas eram as letras de suas músicas -
verdadeiras poesias - o piano, o violão, o bandoneon, os tambores, qualquer
coisa que emitisse um som emocionado, à moda latina ou africana.
Como repórter de Contigo e Intervalo (revistas da Editora Abril) freqüentei a
casa de Antônio Marcos (Pensamento da Silva) e Vanusa, quando Taiguara também
vivia por lá, no bairro de Santo Amaro. Ficava atônito, às vezes, em meio à
discussão que tanto poderia começar pelo mau gosto da estátua de Borba Gato,
ali pertinho, como enveredar pela linguagem rebuscada da literatura, das artes
visuais, da poesia. A discussão em torno da estátua é uma das mais comuns entre
os pretensos intelectuais paulistanos. É considerada feia, alguns a chamam de
monstruosa, mas mesmo assim constitui um marco da vida paulistana, ou pelo
menos o mais importante símbolo do bairro de Santo Amaro, na pior das hipóteses.
Naquela época, embora já se comesse muita massa em São Paulo, ainda não estava
consagrada a expressão tudo acaba em pizza. Tudo acabava em cerveja, conhaque
ou uísque, conforme a disponibilidade do momento. A preocupação com comida não
subia à cabeça em momentos tão grandiloqüentes quanto a discussão entre a arte
e a vida. Tudo muito pretensioso, mas nada científico.
Claro, aquelas discussões também me interessavam por causa de certa
identificação com a temática. Mas quase nada daquilo transparecia nas matérias
que fazia. Conforme orientação editorial, tinha de falar do gosto dos artistas
- a cor, o carro, a comida preferidos, coisas do gênero. As eventuais
preferências políticas do entrevistador e dos entrevistados não figuravam nas
reportagens, que se propunham apenas a despertar ilusões e obviamente vender
milhares de exemplares.
Contigo chegou a tirar 500 mil exemplares por mês. Intervalo vendia em torno de
70 mil por semana e foi fechada em 1974 porque dava prejuízos à Abril. Roberto
Civita comunicou a decisão aos 50 jornalistas afirmando que ela chegara a “um
túnel sem saída”. Mas isso é outra história.
Conheci uma das três viúvas de Taiguara - Ana Lasevicius - meio por acaso. Foi
numa dessas oficinas literárias de São Paulo, o Projeto Mosaico, do professor
Gabriel Perissé. Ex-revisor da Editora José luO Olympio, Gabriel abandonou a
profissão no Rio de Janeiro para fundar o tal projeto, que pretende transformar
em uma Organização Não Governamental (ONG), dedicada ao incentivo à formação de
escritores, revisores e professores.
A maioria dos alunos de Gabriel é constituída de artistas plásticos,
jornalistas, intelectuais desempregados, donas de casa com sonhos literários,
cada um deles com uma idéia na cabeça e nenhuma câmara na mão. No máximo, cada
um leva debaixo do braço um livro de poesias, inédito naturalmente, ou um
calhamaço de memórias, diários, anotações, projetos. Após algumas aulas sobre a
arte de escrever, os trabalhos são discutidos em classe, selecionados, e
eventualmente saem numa antologia anual.
Foi Gabriel que me aproximou de Ana. Pragmático, sugeriu que ao invés de
memórias de um jornalista desconhecido, eu trabalhasse a memória de Taiguara,
figura conhecida e que tem lá seus admiradores. Na pior das hipóteses, uma
história muito mais viável, sob todos os aspectos. Nada mais convincente.
sOBRE O AUTOR
Flávio Tiné nasceu em Gravatá – PE, em 12/01/1937 e morou
alguns anos em Caruaru, antes de mudar-se para Recife, a fim de cumprir serviço
militar obrigatório.
Jornalista profissional desde 1962, quando começou
na Última Hora, Recife. Seu último emprego foi como assessor de imprensa do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, onde ficou 21 anos.
Antes, trabalhou em duas outras assessorias de imprensa: Siemens e Unibanco. Já
havia passado por diferentes experiências como repórter e redator na Editora
Abril, O Estado de S. Paulo, Diário do Grande ABC, A Gazeta e Diário do Comércio
e Indústria. Escreveu "O Último Romântico" (poemas e sonetos), "Pois não, Doutor", sobre o HC;
"Viver Tem Remédio", "As Boas Lembranças da
Luta", "Memórias Escrachadas" e "Do Chão que pisei", crônicas. Tem dois filhos e seis netos.
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