VIZINHANÇA
VIZINHANÇA
Moro num condomínio onde os prédios são tão próximos uns dos
outros que a gente vê quem chega e quem sai e ouve choro de nenén, latido de
cachorro, miado de gato e até o som da TV dos outros apartamentos. Uma vantagem
para quem mora sozinho, que pelo menos se sente vivo, ou uma desvantagem quando
se observa e se ouve o que dizem.
Fica difícil escapar de comentários tipo já vai gastar
dinheiro, acordou cedo hoje, onde vai tão bem vestido, que belo dia, etc.
Algumas vezes dá vontade de mandar para “aquele lugar”.
Já contei e repito o caso de um dos meus chefes na Última
Hora Nordeste que, diante de meu cordial “bom dia”, respondia irônico: “bom dia
por quê?” e acrescentava: “vamos ao trabalho”. Era Múcio Borges da Fonseca, de
saudosa memória, que além de trabalhar no Recife militou também na UH de São
Paulo e na Realidade. No fundo, uma boa alma.
Na maioria dos casos, no entanto, respondo com educação aos
que me cumprimentam. Não vale a pena irritar-se com tão pouco, nem quando me
perguntam qual o meu signo ou se dormi bem. Para quem ouve os passarinhos às
quatro da matina, o resto do dia é lucro.
Há os que me aguardam com ansiedade para dividir seu vale de
lágrimas: não comeu, não dormiu, o filho chegou bêbado, por aí afora.
Outro vizinho é generoso ao extremo. Segura-me pelo braço e exagera
nos elogios, referindo-se, por exemplo, aos tempos em que eu defendia com unhas
e dentes o Governo Miguel Arraes em Pernambuco. O ouvinte nem sabe do que se
trata, mas ele prossegue.
Outros fogem dele como diabo da cruz. Ouvi lá vem aquele
chato. E o outro responde: chato de galocha. Tive de recorrer ao filósofo
Leandro Karnal para relembrar o significado de tais expressões. Karnal explica
em saboroso artigo publicado no Estadão de 22/09/2024 com o título de O Mala,
aquele que não espera ser chamado para opinar.
A proximidade dos prédios nos protege do sol, do frio e do
vento, mas não da língua da vizinhança.
SP 24/09/2024
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