MINHA COR QUEM FAZ SOU EU
Quis o destino que chegasse aos 79
anos - privilégio de poucos - são e salvo, mais salvo do que são. Chego trôpego,
como cavalo manco, ainda assim de cabeça erguida e inatingível por qualquer
Operação Lava Jato, CPI ou devassa fiscal, mesmo porque sempre fui de baixa
periculosidade e sem nenhuma agressividade notória ou potencial. Se algum crime
cometi foi contra mim mesmo, tendo sido simultaneamente algoz e vítima.
Na infância, em minha remota Gravatá de
céu límpido e azulado, deitava no chão e olhava para o alto para contar estrelas
e perguntar o que é o mundo. Buscava respostas objetivas às perguntas que
ousava em nome da curiosidade. As respostas nunca me satisfizeram por completo,
sendo provavelmente proporcionais à minha ignorância.
Nasci em 1937 e minha trajetória pode ser dividida em duas etapas: antes e depois de 1964.
Antes fui balconista datilógrafo,
cabo almoxarife, bancário e revisor, depois tornei-me jornalista. Na década de
60 aderi de corpo e alma a uma espécie de movimento político que colocava Miguel
Arraes de Alencar como salvador da Pátria. Alguns o classificavam
inapropriadamente de comunista, quando o que ocorria na verdade é que giravam
em torno dele as esperanças de uma população sofrida, em busca de dias
melhores. O jornal Última Hora – Nordeste, que me acolheu como jornalista, era um
dos porta-vozes dessa corrente. Em 1º de Abril foi invadido pelo Exército, que
prendeu os responsáveis pela Redação, inviabilizando sua publicação por alguns
dias. Quando voltou a circular já não tinha condições políticas nem econômicas
de continuar. Seus repórteres, inclusive eu, eram presos ou convocados a depor.
Fiquei 30 dias dormindo em bancos de madeira ou no chão, até ser liberado com a
condição de não sair da cidade. Em agosto parti para São Paulo, iniciando a
segunda etapa de minha vida a que me referi.
Desde o início vivia olhando para os
lados, com a impressão de que estava sendo seguido. Ainda hoje me assusto
quando alguém bate em meu ombro pelas costas, me chamando pelo nome. Foi assim
que os investigadores do DOPS me prenderam naqueles dias que marcaram para
sempre a minha vida pregressa. Eu não era totalmente inocente, claro, mas
neguei três vezes como Pedro, na tentativa bem-sucedida de escapar à violência
contra os supostos subversivos que, segundo os militares, ameaçavam a segurança
nacional.
Na Capital paulista iniciei nova
vida, escudado em minha eventual capacidade de trabalho e protegido por uma
espécie de aura, atribuída às vítimas do golpe de 64. Foi a Editora Abril, o
maior celeiro de jornalistas na década de 60, que me firmou no mercado de
trabalho. De lá, alcei voo para os jornais O Estado de São Paulo, Diário do
Grande ABC, A Gazeta e posteriormente para assessorias de imprensa, quando
deixei de ser mero redator para me transformar em assessor, procurado pelos
jornalistas em busca de informações. Mais tarde, teria o consolo de ser
bafejado por lindas jornalistas, todas filhas de ex-colegas da Editora
Abril. Doce e incômoda ilusão.
Foi no Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo que pude exercer de fato todo
o meu discernimento, enfrentando a imprensa com sua fúria de notícias e o poder
dos médicos, imbuídos de auto endeusamento.
Minha ida para o cargo de assessor
decorrera de mero acaso. O superintendente, eleito pela comunidade, procurava
um jornalista para o cargo. Convidado, Demócrito Moura, do Jornal da Tarde,
declinou do convite por não querer sair do jornal, e me indicou. Eu era redator
da assessoria de imprensa da Siemens.
Creio que meu relativo sucesso,
comprovado pela longevidade no cargo, pode ser atribuído a minha capacidade de
ouvir. Alguns companheiros perguntavam como eu aguentava tudo aquilo e eu atribuía
tal perseverança a minha excessiva humildade. Além disso, com a idade, já não
tinha tanta esperança de conseguir novo emprego. Era obrigado a utilizar outras
táticas para driblar os inimigos internos, como bancar o autista, fazendo de
conta que eventuais críticas não atingiam meu trabalho. Resisti até a última manchete.
Ao me aposentar fiquei a mercê dos
médicos cuja fama ajudei a construir. Primeiro me extraíram a próstata, por
absoluta necessidade. Depois colocaram-me próteses na lombar e na cervical,
para corrigir estrangulamento da medula. E lá vou eu, carregando “pontes”.
Aprendi a driblar as dores e a olhar as cores conforme suas respectivas matizes.
Assim, meus dias não são negros e minhas noites não são claras. Faço a cor que
me convém.
Comemorando meus 79 anos..
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