TIMIDEZ AO QUADRADO

 


Nem era jornalista ainda - era bancário - quando editava o jornalzinho da categoria, cujo presidente era Antônio Fausto do Nascimento. Ao comentar uma peça que um grupo de amadores apresentou no sindicato desanquei a atriz principal, sugerindo que ela desistisse da carreira por que de atriz ela não tinha nada. Meu Deus! Até hoje me arrependo disso. A moça chorou vários dias. Pelo que me contavam, poderia tentar suicídio tal o desencanto de que se apoderou.

Passei então a valorizar mais cada palavra. Se era tímido, tornei-me super tímido. Ao emitir opinião sobre alguma coisa repensava cada expressão, à moda de Osman Lins, que me confidenciou demorar um dia inteiro para produzir vinte linhas de um romance.

Uma lembrança desse modo de agir ocorreu durante almoço na casa de velho amigo, quando ainda morava no Recife. À mesa, com esposa e três lindas filhas que eu amava mas não tinha coragem de confessar, o anfitrião sapecou:

-- Você tem algo a haver com Jesus?

E eu, naturalmente, larguei um por quê?

A essa altura o dono da casa, Hiram de Lima Pereira, explicou que estávamos comendo e conversando há muito tempo e eu não abria a boca, exceto para introduzir boas garfadas. Insistiu na pergunta, se eu teria algum parentesco com Jesus Cristo, que só falou aos 33 anos.

Mudo estava, mudo fiquei, permitindo que ele mesmo desse as explicações que desejasse. Não podia confessar que estava apaixonado pelas três. Uma delas tinha namorado, com o qual se casou e teve filhos. Restavam duas, que também se casaram e tiveram vários filhos.

Quando, finalmente, abri a boca -  era tarde demais.

Quem foi ele? Hiram de Lima Pereira foi jornalista, poeta, ator e deputado federal, nascido em Caicó (RN), em 3/10/1913. Foi também dirigente do Partido Comunista Brasileiro e assassinado pelo golpe de 1964. Em 31/12/1974 participou, disfarçado, de um jantar na casa de uma de suas filhas no bairro de Santana (ao qual compareci). Lá pelas tantas voltou para o Rio pela via Dutra, dirigindo seu próprio carro. Suas prerrogativas de ator permitiam que tudo fosse falso: bigode, carteiras de identidade e de motorista, etc. Mesmo assim, não se sabe como, desapareceu no trajeto. Nunca mais se achou nenhum vestígio dele.

O que mais me atraía em Hiram era sua absoluta disponibilidade ao abordar as pessoas. Quando se dirigia a alguém – qualquer pessoa, de qualquer nível – deixava-a literalmente de boca aberta, encantada com suas palavras, qualquer que fosse o assunto. Sua mulher Célia, também atriz e encantadora, como as filhas do casal, herdou a beleza e a facilidade de relacionamento a que me refiro. Não era exatamente o “comunismo” dele que me atraía, acho. Era a família. Daí minha mudez.

PS – Zodja Pereira, uma daquelas meninas, trabalhou como atriz nas TVs Cultura e Bandeirantes. Hoje dirige uma empresa de formação de dubladores na Lapa-SP, a Dubrasil.

 

SP 09/03/2024

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