PERSONAGEM DE ROMANCE

 

Todo mundo tem um amigo pra chamar de seu. É aquele que não pode ver nada errado e vai logo detonando. Pode ser qualquer coisa, desde um pingo d’água na torneira, um vizinho arrastando o pé no andar de cima, um motoqueiro em disparada com escapamento aberto, uma pessoa sem máscara ou o preço da carne, cada vez maior.

Não precisa muito, basta olhar com cara amarrada, pergunta logo o que foi. Ai do interlocutor se não se mandar imediatamente. Pode levar no mínimo uma peitada.

Meu amigo é daqueles que ralaram a vida inteira para criar os filhos, acordando de madrugada e voltando à noite, sem dispensar uma passadinha no boteco, que ninguém é de ferro. Se um dos filhos demorasse mais do que dez minutos no banheiro não perguntava duas vezes: arrombava a porta. Ai da menina se fosse flagrada aos beijos com um coleguinha do colégio.

Quando o garçom serviu a mesa ao lado antes que a nossa, que chegamos primeiro, jogou o coco verde em direção ao pobre coitado, que só não foi para o pronto socorro porque se abaixou. A mesa estava com cinco crianças, um perigo.

Torneiro mecânico como Lula, onde estivesse defendia o metalúrgico com unhas e dentes, num discurso inflamado, provavelmente sob influência dos radialistas – o rádio conta com excelentes comentaristas, mas alguns exageram e confundem o ouvinte menos informado.

O amigo é daqueles que nunca desistem. Continua o típico machão made in Caruaru, daqueles que não se ofendem quando, ao pedir uma salada de verduras num restaurante de sua terra, como ocorreu quando em férias, ouve o conterrâneo perguntar:  o que é isso, rapaz? Virou bicha?

Uma das coisas que admiro nele é a honestidade. Nunca toma cafezinho se não for com seu próprio dinheiro. Aceita constrangido uma pinga ou um copo de cerveja, quando alguém oferece, mas vai logo dizendo que paga amanhã. E paga.

Pergunto a mim mesmo porque cultivo tal amizade, de certa forma inconveniente, e não encontro outra explicação.  Deve ser algo como inveja. É possível que se trate de alter ego, pois embora não existam duas pessoas iguais no mundo, gostaria de ser como ele, chutar a barraca de vez em quando dizer o que gostaria, soltar a franga. Mas normalmente calo em nome de suposto bom senso, quando não deveria. Já me esgueirei em situações desagradáveis, por vergonha ou exagerado medo.

Por fim, se meu amigo de vez em quando é insuportável, a vida às vezes também o é. Não se deve ser cúmplice de nenhuma injustiça. Se fosse romancista, ele seria personagem pra Dostoiévsky nenhum botar defeito.

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