FISIOLOGIA DO MEDO
Tenho medo de dormir menos que o necessário e amanhã ser
cobrado pelo inconsciente. Tenho medo de dar um passo maior do que a perna e
cair no primeiro buraco que se me apresente. Tenho medo de comer além da conta e
vomitar na cerimônia em que seria conduzido ao palco para receber troféu de
idiota.
Antes, não tinha medo de nada. Subia a Serra das Ruças
sozinho, a pé, desviando-me dos espinhos e das cascavéis; nadava de um lado a
outro do rio Ipojuca em plena cheia, com águas revoltosas e imponentes
baronesas me puxando para o fundo.
Não tinha medo de ir de bar em bar em plena madrugada, ao
lado de marinheiros bêbados e mulheres mal-amadas. O máximo que acontecia era
acordar dia seguinte deitado às margens do rio Capibaribe, sol na cara. Medo
não, vergonha não, era literalmente sem medo e sem vergonha.
Um dia peguei o jipe do patrão e fui ao bar onde se reuniam
os amigos de seresta e boemia. Depois dos primeiros goles, enchi o pequeno
carro de todos os amigos e fomos juntos ao Night, clube da cidade onde se
reuniam mulheres de vida fácil e homens de bom coração. Depois do
vira-vira-virou levei cada um em sua casa e devolvi o carro a seu lugar de
origem, com único dano: o escapamento quebrado pelos solavancos. Nenhum medo,
pequeno prejuízo.
Medo teria mais tarde ao andar nas ruas de São Paulo durante
anos, trabalhando oito ou mais horas por dia, viajando em ônibus e depois em
carro próprio, tendo de provar a cada dia que era capaz, tendo de matar um leão
por dia, comendo o pão que o diabo amassou, fazendo das tripas coração, e por
aí afora. E alguém dizendo que era pouco. Não bastava um apê de 70 metros
quadrados e um Fusca. Queria mais, uma cobertura com vistas para o mar, talvez.
Tenho medo de, além dos oitenta, das co-morbidades, da lua se
escondendo entre os prédios e do sono que não chega como antigamente, quando
bastava sentar no ônibus e o motorista avisar – chegamos!
Enquanto São Paulo comemora sua Revolução Constitucionalista
de 1932 eu comemoro os 50 anos de meu segundo filho, por acaso Paulo, ouvindo
Sofia Vasheruk tocar o primeiro concerto para piano e orquestra de Tchaikovsky.
O medo já se foi.
SP 09/07/2020
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