CONVERSA PRA BOI DORMIR
Chegar aos 83 é surpreendente. Não traz sabedoria, não
autoriza a esnobar os mais novos, tampouco ajuda a entender com rapidez o que
acontece no próprio quintal e muito menos neste mundo. É verdade que a
facilidade dos meios de comunicação nivela as pessoas. O que escrevemos aqui, o
que está nos jornais e sai na televisão é imediatamente “curtido” pela
faxineira, também preocupada com o coronavírus. Logo em seguida ela pergunta o
que é genoma. Não sei explicar assim de supetão.
O isolamento compulsório nos obriga a acompanhar diálogos
entre vizinhos, que passeiam diariamente com cachorros enfeitados dos pés à
cabeça e à noite batem panela, todos sabem por quê. Além do latido dos cachorros
somos obrigados a ouvir algum marceneiro reformando o apartamento vizinho e os
helicópteros procurando qualquer desgraça para o noticiário. Ai meu Deus! Não
bastam os irritados apresentadores gritando contra as autoridades, temos de
acompanhar também a perseguição policial, os tiros, as balas perdidas!
Conheço alguns privilegiados que compraram casa no
mato, tipo sítio ou fazenda, para montar biblioteca, televisão e internet. Uma
casa no campo, à moda de Elis Regina. No caso dela, que adiantou? Como se sabe,
ela desfrutou os ares da Serra da Cantareira durante alguns anos, com os três
filhos, e em seguida trancou-se num apartamento perto da Avenida Paulista e
drogou-se até a morte. Nem chegou aos quarenta.
Digamos, a bem da verdade, que não é comum. A
inquietação mental é típica de pessoas superdotadas. Ao entrevistá-la, por exemplo,
nem precisava fazer muitas perguntas. Ela mesma explodia, falando pelos
cotovelos, ou mandava o repórter à merda, quando não queria falar.
A quarentena a que já me submetia por dificuldades de
locomoção tem sido benéfica, ao trazer de volta memoráveis estórias. De crônica
em crônica, vou contando. Quem sabe meus seis netos se interessem por essa
conversa pra boi dormir!
SP 02/04/2020
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