VIAJAR, AGORA, SÓ EM SONHO




Aos dois anos vivi minha primeira experiência de andarilho. Saí estrada afora, sem destino, apenas olhando as árvores e uma ou outra casinha que beirava a pista de terra. Alguém achou estranho aquele menino andando sozinho e comentou:
-- “Tu num é o neto de Damião? Aonde tu vai?”
Sem esperar uma resposta, o caridoso cidadão me conduziu à casa de meu avô, que não achou nada engraçada a ousadia.
Aos 18 anos peguei um trem da Great Western em Caruaru e fui parar no Recife, para prestar serviço militar.
Na Aeronáutica fiz meus primeiros voos em pequenos DC-3 e em gigantes cargueiros, sempre que os mecânicos necessitavam testar peças substituídas. Voei quase tanto quanto um Brigadeiro. Às vezes ia do Ibura ao Parque da Aeronáutica – um super almoxarifado de peças de avião em São Paulo, para buscar itens em falta.
Mais tarde, então, já repórter, realizei outros sonhos de andar por aí. Durante uma reportagem em São José de Belmonte subi desastradamente o morro de minério de ferro que fotografava e luxei o ombro, ao segurar-me numa árvore. Interrompi a reportagem para ir a um pronto socorro que não tinha anestesista. Mandaram que eu cheirasse éter até desmaiar, para não sentir nenhuma dor na hora de colocar o braço no lugar.
Rio e São Paulo já não eram novidade para mim quando aceitei convite de Francisco Julião e fui a Cuba. Uma oportunidade de conhecer a ilha, mas também um curso de socialismo, propaganda discreta. Quem fosse àquele país haveria de apaixonar-se por seus costumes, ensino gratuito, tudo muito bonito. Teria ficado na Universidade de Havana, não fosse o impedimento de que não concluíra ainda o curso secundário.
Voltei para o Recife com o passaporte carimbado, o que me credenciou para outro tipo de viagem, mais inesquecível que todas as outras, em 1964: 30 dias no xadrez da rua da Aurora, onde trancafiaram, amontoados, dezenas de simpatizantes do Governo Miguel Arraes. Quando me soltaram,  após constatar o caráter sonhador de minha viagem a Cuba, fui para São Paulo, iniciando outra vida e outras viagens. Conheci vários países.
Ao me aposentar, propus-me uma maratona gastronômica impossível: conhecer um a um os 46 mil restaurantes da cidade. Vem o coronavírus e não me deixa sair de casa.
Desde então minha sina tem sido percorrer os 69m2 do meu apartamento.  Viajar, agora, só em sonho.


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