DO CHÃO QUE PISEI
Nunca
entendi como meus pais criaram cinco mulheres e quatro homens; ele era
sacristão e ela do lar- costureira, cozinheira, lavadeira e cantora do coro da
igreja. Quando fiz 18 anos, escolhi a Aeronáutica para livrá-los de uma boca e
de outros encargos menores, tipo sapato, roupa, livro escolar. Assim, eles não
precisariam me colocar no ginásio, me ocupar como datilógrafo da sacristia ou a
tocar sino na torre da igreja, na hora de um enterro, para ganhar uns trocados.
Buscaria meu próprio sustento.
Menino ainda
fui acólito, balconista de tecidos e de farmácia, bilheteiro de cinema,
datilógrafo da prefeitura e do cartório (não se condenava trabalho infantil) e em
seguida soldado e cabo. Deixei de ser militar para ser bancário e em seguida jornalista.
A profissão
era regulamentada e limitava o trabalho a cinco horas por dia, permitindo a
proeza de acumular três empregos (7 às 12h em um; 13 às 18h em outro; e 19 às
24h num terceiro). Fazia também uma coluna de crítica de TV para um quarto
jornal, usando o farto material de divulgação disponível. Mandava o texto por
fax ou levava de Fusca no trajeto entre um emprego e outro.
Apesar de
tudo isso, a renda era pequena. Montei então uma banca de jornais, que eu mesmo
abria ao nascer do sol e confiava a minha esposa, então grávida de nossa
primeira filha. Nem sonhava que mais tarde seria pai e mãe de um casal. O mesmo
Fusca que servia para abastecer e abrir a banca de jornais servia para levar e
trazer os meninos à pré-escola, ao ensino secundário e à faculdade. Nunca me
vangloriei disso, como Ronnie Von.
Sonhei muito
em fazer um romance à Dostoievsky, cuja obra me impressionou muito na
juventude, mas tudo o que pude fazer foram crônicas abordando superficialmente
o que vivi e por onde andei.
Ninguém
espere nessas crônicas tiradas filosóficas, verdades absolutas, mar de
histórias ou aconselhamentos à Dale Carnegie.
Não escolhi o chão que pisei e parei de comemorar a vida quando o
estômago começou a embrulhar em discretas advertências. Fui escrevendo com o medo
de quem anda em terreno minado.
Deu nisso aí.
Na melhor das hipóteses, essas crônicas serviram para que minha cabeça não explodisse,
com tantas lembranças boas e más. Alzheimer não me ajudou a esquecer nenhuma
delas.
(Prefácio de
novo livro de crônicas em editoração)
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