TRINTA DIAS INESQUECÍVEIS



No dia 31 de março de 1964 eu era repórter do jornal Última Hora/Nordeste e assessor de imprensa da prefeitura do Recife. O jornal apoiava o governador Miguel Arraes e o prefeito Pelópidas Silveira e eu me alinhava conscientemente nas diretrizes vigentes, fazendo a ponte entre as autoridades constituídas e a imprensa. À noite, o jornal foi cercado e invadido por um grupo de militares do Exército, que inicialmente pretendia prender todos os jornalistas mas, após negociação, concordou em levar apenas os chefes da redação e de reportagem, soltos no dia seguinte, tão logo esclarecido que não tinham vínculos com partidos políticos.
Antes de ser assessor de imprensa da prefeitura eu era setorista na Câmara Municipal, conhecendo todos os projetos de interesse do município e obviamente todos os vereadores, com quem conversava e entrevistava diariamente. 
Nos dias que se seguiram ao fechamento do jornal passei a frequentar a Associação de Imprensa de Pernambuco, na avenida Dantas Barreto, onde me supunha seguro, embora soubesse que jornalistas de todas as tendências também andavam por ali. A AIP dispunha de ótimo restaurante, para onde acorriam também intelectuais e artistas. Além disso, havia uma sala de bilhar e sinuca, ambiente de agradável convivência. Passava as tardes jogando com o amigo e colega Claudio Tavares e paquerando a filha dele, Eva, secretária da AIP. 
Certa tarde, comecinho da noite, ao sair do prédio e me dirigir ao parque 13 de Maio para encontrar a namorada, fui seguido sem perceber por um jeep do Dops. Alguém bateu no meu ombro e lascou  o tradicional "teje preso"!
Ao lado dos policiais encontrava-se o vereador José Silvestre, vingando-se do perigoso jornalista que denunciara esquema de corrupção da Câmara Municipal, que destinava cerca de 5 mil cruzeiros para cada vereador gastar a seu bel-prazer.
O próprio vereador fizera a denúncia e por causa de sua repercussão passou a ser odiado pelos demais. Com o golpe, passou a auxiliar a polícia no meu encalço até me entregar pessoalmente ao temido delegado do DOPS, Álvaro da Costa Lima. 
Fiquei alguns dias num banco de madeira, lado a lado com outros presos, dormindo sentado. Depois fui transferido para um pequeno xadrez, de mais ou menos 4 metros quadrados, conhecido como buque, que dividia com uns dez outros presos. Dormíamos no chão. A comida era uma marmita insuportável. Por isso, recebia almoços trazidos pelas namoradas e por minha irmã Conceição. Às vezes mais de uma refeição. Dividia com os companheiros, claro.
Trinta dias depois fui chamado para um interrogatório em que as principais acusações eram pertencer à Associação dos Amigos  da União Soviética, ter ido a Cuba a convite de Francisco Julião e ser comunista, naturalmente. Como prova de minha perigosa atuação mostraram-me fotos de uma entrevista coletiva do governador Miguel Arraes no Salão Nobre do Campo das Princesas. Eu estava entre os entrevistadores. Em outra foto, eu aparecia ao lado de Caio Prado Júnior na Plaza de la Revolución José Marti, Havana.  
Queriam a todo custo que eu declinasse o nome dos integrantes da "base" dos jornalistas do Partido Comunista Brasileiro no Recife. Os nomes eram notórios, mas eles queriam colocar alguém como informante, para desmoralizá-lo. Embora com medo das consequências recusei-me a atender os interrogadores.
Dias depois os jornais estamparam a relação dos jornalistas do Partidão, segundo outro depoente. 
Dadas as devidas explicações fui solto com a recomendação de que não poderia me afastar de minha residência, pois seria chamado novamente.

Ao deixar o buque da rua da Aurora fui levado a Caruaru pelo jornalista Carlos Garcia, dirigindo um Fusca, e Roberto Jungman, ex-gerente de UH. Era uma operação de risco.
Em Caruaru havia uma pensão de onde saíam com frequência grupos de pequenos comerciantes para comprar jeans em São Paulo. A dona da pensão, Antonieta, fez uma vaquinha pra pagar minha passagem e me enfiou numa Kombi com esses homens. Virei pau-de-arara.
Até hoje moro na capital paulistana. Até hoje lembro aqueles dias inesquecíveis. 


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