QUANDO RECEITA TAPAVA BURACO





Ainda não voltamos aos tempos em que o jornal O Estado de São Paulo publicava receitas no lugar das matérias recusadas pela censura. Estava na redação naquela época, década de 70, ao lado de Clóvis Rossi, Carlos Conde, Ludenberg Góes, Oswaldo Martins, Ricardo Kotscho, entre outros, que trabalhavam num mesão, sob os olhares de Oliveiros Ferreira.  
Cada um cuidava de um assunto.
Informações colhidas em todo o país, através das sucursais, eram confiadas a um de nós, com a árdua missão de resumi-las. Vinte laudas tinham de ser reduzidas rapidamente a uma e meia, no máximo duas, sem mudar a essência e sem erro de datilografia.
Era bom nisso. Mais do que na produção de textos.
A maioria dos membros da redação era originária da rua Major Quedinho e se instalara confortavelmente na Marginal do Rio Tietê. Uma peculiaridade do mesão era a existência de um grupo de Santos, que às sextas-feiras se animava para descer a serra e fazer inveja aos paulistanos. O grupo tinha família, casa ou apartamento à beira-mar, para inveja de todos nós.
Nordestino, praticamente expulso de Pernambuco por ter sido simpatizante do Governo Miguel Arraes, estava ali só para cumprir minhas tarefas de copidesque, sem partidarismo.
O único que me conhecia de verdade era Lenildo Tabosa Pessoa, cujo pai, Luís Pessoa - dono do Colégio de Caruaru - me dera uma bolsa de estudos para fazer o ginásio. Lenildo era articulista do Jornal da Tarde (redação anexa) e detestado pela maioria dos demais colegas por suas posições direitistas. Mas nossas conversas giravam em torno de famílias caruaruenses, seus costumes e contradições. Lenildo tinha sido seminarista, meu pai e meu irmão também, daí nossa relativa intimidade. Assuntos não faltavam, de Tristão de Athayde a José Condé e Fernando Lyra, todos conterrâneos, naturalmente.
A composição da redação era eclética e descrita de forma melancólica pelo repórter Luís Roberto de Souza Queiroz, o Bebeto, em artigo - quase um necrológio - sobre o que intitula de Extadão.
No caso, o ex tem o sentido de algo em extinção, o que não significa necessariamente que o glorioso jornal esteja morrendo. Quem está quase à beira da morte é parte daquela geração, cujos problemas são expostos com realismo em trabalho feito a duas mãos com Táta Gago Coutinho, sua eterna colaboradora, e publicado em seu blog.
Bebeto relembra o estado de saúde de cada um dos "heróis" daquela época, a maioria estropiada por males da idade. Alguns ainda se comunicam pela internet, outros sequer conseguem ler.
A dupla, aliás, fez também substancioso relato em “Bastidores da Notícia Histórias da Redação do Estadão”, publicado no Amazon. 
Tudo isso ocorre num momento em que voltam as ameaças. Não basta portar uma arma para ser enquadrado como terrorista, basta postar uma frase nas redes sociais. Não basta temer a própria sombra, como na ditadura. O teclado é mais ferino. É melhor ficar por aqui, antes que algum bisbilhoteiro me jogue no rol dos raqueados. Como diria o Bebeto, estou entre os estropiados.





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