VOLTAS QUE O MUNDO DÁ
Meu ex-cunhado Paulo Siqueira, que mora em Paris desde
que se formou em Medicina há 50 anos, estranha a falta de solidariedade no caso
da Catedral de Notre Damme. Certamente já se sente um francês, casado que é com
uma francesa, com quem tem filhos e netos, e mora há poucos metros da famosa
igreja.
Não sei se cabe um pedido de desculpas ou uma
justificativa pela relativa indiferença. Inicialmente, devo chamá-lo de
privilegiado. Nem Chico Buarque, tampouco Fernando Henrique Cardoso, que
possuem apartamentos em Paris, desfrutam de tal intimidade: o cunhado
jataubense só precisa atravessar uma ponte para entrar na igreja. Pode até ir a
pé. Em segundo lugar, não sei se minha cultura made in Caruaru alcança o valor de tantos objetos milenares ali
depositados.
Quando visitei a velha cidade preferi ver Mona Lisa,
no Louvre. Nem fiz “selffie”. Preferi visitar as linhas modernas da sede do
Partido Comunista francês, desenhadas por Niemayer, e fui ao Arquivo Nacional
tentar descobrir a origem do sobrenome Tiné. Informaram que vem de Tonel,
apelido dado aos homens que vendiam água em tonéis carregados sobre os ombros,
na zona rural. Daí Tonel, Tonelli, Tinel, Tinelli, Tinet e Tiné, nomes
abundantes hoje na lista telefônica de Paris. Posteriormente, surgiram os Tiné
no Nordeste do Brasil.
Mas o que inibiu minha manifestação de solidariedade
não foi nada disso. Talvez tenha sido o impacto das imediatas intervenções,
todo mundo querendo mostrar que já esteve lá e provar com “selffies”. Diverti-me
como todo turista apressado que caí na mesmice de subir e descer dos ônibus apenas
o tempo suficiente para fotografar monumentos.
Nada justifica minha falta de solidariedade, salvo o
fato de andar mais preocupado com as mudanças de outra catástrofe, invisível a
olho nu, que anda ocorrendo por aqui. O Museu da Língua Portuguesa, o Museu Nacional,
o Museu do Ipiranga, todos à míngua devido à falta verbas.
Enquanto isso o mundo inteiro sai em socorro de uma
igreja, para a qual o mundo inteiro viaja. R$ 35 bilhões serão gastos na
restauração de imagens, peças e outros detalhes artísticos da bela catedral!
Por fim, uma prova de que não estou tão indiferente,
como supõe meu ex-cunhado. Minha neta mais velha entra numa faculdade federal
em Ouro Preto para estudar restauração de obras de arte. Mera coincidência. Ela
escolhera o curso antes dessa tragédia.
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