SOLIDÃO NÃO RESISTE AO DECOTE

Algum dia quis ser só, olhando as paredes ou os vizinhos a caminho do trabalho. Até que pintou no pedaço a Internet. Podia intervir, compartilhar... Não há espaço para a tristeza, a não ser que queiramos propositadamente nos enganar com a saudade. Tentei fazer a apologia da solidão, páginas inteiras reescritas várias vezes com a ajuda de psicólogas, mas o entusiasmo pelo assunto durava apenas enquanto escrevia. 
Lembro também da ousadia de escrever em jornais: "o presidente da República, João Goulart"... como se eu fosse parceiro dele, amigo, alguma coisa assim. Nenhum respeito a maior autoridade do País, com "P" maiúsculo, como mandava o figurino. Mal sabia que as regras valem mais do que as leis, em certos casos. A informalidade do jornalismo é maior do que a formalidade das leis. Atualmente, qualquer pessoa escreve "Fora Temer" com a maior cara de pau. 
Algum dia quis ser médico. Depois de 30 dias conhecendo a revolução comunista de Cuba, levado pela generosidade do amigo Francisco Julião Arruda de Paula, faltei ao embarque na esperança de morar no Edifício de los Becados (bolsistas) e cursar Medicina de graça e sem vestibular. Mero sonho. Faltava um ano para concluir o segundo grau, condição óbvia para entrar na universidade. Empurraram-me de volta ao Brasil no primeiro voo, para concluir o secundário no Colégio Estadual de Pernambuco, tradicional escola do Recife onde conheci líderes estudantis e o professor de história Amaro Quintas, pai de Fátima, até há pouco presidente da Academia Pernambucana de Letras. 
Algum dia quis ser músico. Meu pai tocava violino e minha mãe era corista na igreja matriz de Chã Grande e depois na de Gravatá, onde nasci. Comecei a estudar solfejo com Manoel Bombardino, maestro da Corporação Musical XV de Novembro e pai de Adelson Pereira, atual baterista da Spok Frevo Orquestra. Nunca fui além das serestas à Silvio Caldas, tendo  como parceiro e cantor  Romero Figueiredo. Sabia tocar violão, mas só primeira, segunda e terceira de lá menor e alguns acordes dissonantes. 
Algum dia quis ser jurista. Fui aluno de Franco Montoro na Faculdade de Direito de Guarulhos e na FMU, onde só não fiz jus ao diploma por causa de algumas dependências. Às vezes trocava as aulas por lições de vida nos botecos do Bixiga, cheios de nordestinos com peixeiras a tiracolo. Conheci a lei da faca.

Na redação de O Estado de S. Paulo, Clóvis Rossi, Ludenbergue Góes, Ricardo Kotscho, entre outros, convenceram-me a permanecer jornalista, profissão que me proporcionou a compra de um Dauphine 63 e de um apartamento do BNH, onde ainda moro. O primeiro carro e o primeiro apê a gente nunca esquece.
Algum dia fui crítico de Variedades, como colunista de A Gazeta. Cheguei a ser jurado do programa de Chacrinha e do Troféu Imprensa. Na segunda oportunidade, Sílvio Santos me tomou o microfone quando eu disse que o troféu atribuído a Altemar Dutra era "mais um" que iria para duas salas de láureas que acabara de ver na casa dele. Sílvio não gostou. Queria que tratasse o troféu como o mais importante do mundo. Nesse aspecto, Chacrinha era mais generoso. Pagava à vista para que dissesse qualquer barbaridade. Respeitava José Ramos Tinhorão, o mais sério e honesto crítico de música do Brasil. Alegro-me quando o encontro nos botecos da Barra Funda com Assis Ângelo, cuja cegueira não apagou a visão de historiador da MPB. 
Algum dia quis ser bem casado. Já andava meio cansado de lançamento de livros, discos e demais eventos quando fui buscar uma namorada lá nos confins de Pernambuco. Deu trabalho convencê-la a morar em São Paulo, sendo ela arrimo de família, mas consegui. Trouxe-a no meu Dauphine 63 e tivemos dois filhos maravilhosos, que nos deram seis netos. Mas o casamento não durou para sempre, daí talvez a tese da solidão. Tentei justificá-la, mas nenhuma psicóloga concordou. Bastava um decote, adeus solidão!

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