PAISAGENS DA ALMA
Cariocas se vangloriam de Ipanema. Paulistanos, coitadinhos,
se orgulhavam de sua persistente garoa, que nem existe mais. A
cronista do Estadão ocupa seu espaço com um jogo de palavras em que
tenta justificar a falta de assunto, alegando a riqueza de sua varanda, da qual
visualiza paisagens inesquecíveis. Uma cousa é abrir a janela e ver Copacabana
ou Boa Viagem, outra é visualizar avenidas cheias de carros num vai-e-vem
ensurdecedor. Para a cronista, no entanto, vale engrandecer o que sua varanda proporciona.
Não há aqui nenhuma crítica, pelo contrário. É louvável sua
tentativa desesperada de cumprir prazos, inventando situações inexistentes,
numa criatividade digna do mais completo ficcionista. A crítica, se houvesse,
deveria ser dirigida ao imprecavido leitor, que não consegue distinguir nas
entrelinhas as qualidades de uma verdadeira artista do texto.
Tais
elocubrações ocorrem sempre que vou às ruas de São Paulo. Mesmo que tais
andanças não tenham nenhum objetivo de pesquisa, a paisagem acaba por comandar
certas reflexões a respeito do imponderável em que se constitui o dia-a-dia. Bem
a propósito do que se encontra na ordem do dia – a violência contra as mulheres
- é bom prestar atenção à maneira como elas se vestem. Claro que não se pode
culpar o modo de vestir pelo ataque dos tarados, que ocorre independente da
provocação indumentária. Talvez não seja difícil descobrir o que leva a mulher
a exibir sua sensualidade. Qualquer pessoa se sente bem ao mostrar seus
atributos. Mais fácil, talvez, seja opinar sobre o que leva o homem aos
ataques: sua má índole. Ele age sem levar em conta eventuais dotes da vítima. A
beleza está em vários lugares: nas praias, nas esquinas, no metrô e até nos
modernos centros de compra. Manda o bom senso que a atração se limite às
intenções.
O
leitor deve estranhar essa incursão por assunto tão complexo, especialmente em
momentos tão tumultuados policamente. Talvez não saiba de minha preocupação com
a estética, minhas ilusões com a poesia e minhas tentativas de romancear os
desatinos da vida. Vem de longe essa tentativa não totalmente inútil de fazer
algum tipo de arte verdadeira, não apenas travessura. Nesta, aliás, fui mestre
algum dia. Até me ofereci para abraçar a causa cubana.
Em
1962 faltei propositadamente ao embarque de volta ao Brasil na tentativa de
fincar-me em solo cubano, ao mesmo tempo em que ingressaria na Universidade de
Havana. Decisão insana. Alguns dias depois obrigaram-me a voltar. Precisavam de
revolucionários, não de sonhadores ingênuos.
Em
1985, quase cinquentão, fiz um curso de Inglês para principiante em Havard
(Boston) ao lado de coreanas de 15 anos, com as quais conversava na linguagem
de sinais. E não era a dos mudos. Bastava a troca de olhares e apontar alguma
coisa. Não sei quem ria mais. Eu com minha ingênua alegria de criança ou elas
com a naturalidade da juventude irradiante. Eram todas filhas de novos ricos da
Coréia do Sul, burguesinhas em busca do futuro. Caberia, no caso, o lugar-comum
ah! meus vinte anos!
A
esta altura, lembrei-me da noite em que subi correndo os degraus do morro do
Cruzeiro – era assim que chamávamos a réplica do Cristo Redentor de Gravatá
(PE) – só para dar boa noite a uma colega de ginásio que morava no meu coração.
Da mesma forma que subi, ela desceu correndo - um não de crueldade
inesquecível.
Pobre
alma, que confunde paisagens urbanas com recônditas memórias.
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