ROMERO FIGUEIREDO
ROMERO FIGUEIREDO
UMA VIDA ENTRE
AMOR E IDEOLOGIA
Na juventude, Romero Figueiredo e eu verbalizávamos nossa impotência diante das dores do mundo, a beleza das donzelas, a disponibilidade das mulheres do Night Club e o heroísmo de Luís Carlos Prestes. Depois de passar em revista a poesia de Vinícius de Moraes e de Daniel Lima, curtíamos os nossos ídolos locais: discursos irados de Aluízio Falcão, sonetos de Maurílio Bedor Sampaio, solos de violão de Jaime Mendonça e nós mesmos nos arriscávamos em memoráveis serenatas, com canções de Sílvio Caldas e Orlando Silva – Romero era o cantor e eu o violonista.
OBSESSÃO MARCA
TODA SUA VIDA
Na juventude, Romero Figueiredo e eu verbalizávamos nossa impotência diante das dores do mundo, a beleza das donzelas, a disponibilidade das mulheres do Night Club e o heroísmo de Luís Carlos Prestes. Depois de passar em revista a poesia de Vinícius de Moraes e de Daniel Lima, curtíamos os nossos ídolos locais: discursos irados de Aluízio Falcão, sonetos de Maurílio Bedor Sampaio, solos de violão de Jaime Mendonça e nós mesmos nos arriscávamos em memoráveis serenatas, com canções de Sílvio Caldas e Orlando Silva – Romero era o cantor e eu o violonista.
Ainda jovem Romero
parte para São Paulo, onde se coloca inteiramente à disposição de Luís Carlos
Prestes. Romero era - e ainda é - uma figura de dedicação total. Quando resolve fazer algo, faz só aquilo. Foi
assim que se dedicou de corpo e alma ao líder comunista, cuidando de sua
segurança pessoal, ajudando-o em sua conturbadíssima agenda. Conheceu pessoalmente, nessa época, todos os
líderes comunistas do Brasil, com os quais manteve contatos durante anos, sempre
na maior discrição e no maior respeito. Morava com o próprio Prestes, no centro
de São Paulo. Sobre esse período, Romero mantém até hoje o maior mistério,
talvez como resquício das amargas experiências do tempo em que o sigilo era
literalmente a alma do negócio. Em nome da segurança havia um rigoroso pacto de
silêncio, daí a dificuldade de reconstituir esse período.
Nos últimos anos, em
seu retiro da praia de Nossa Senhora do Ó, em Paulista (PE), Romero tenta
rememorar essa época escrevendo uma autobiografia que jamais conclui. Já conta
com centenas de páginas, mas se recusa a mostrar aos filhos e aos amigos,
alegando que não está satisfeito com a redação. Quando cobrado, não disfarça a
insatisfação com o resultado de seus trabalhos. Cada vez que relê, muda
completamente o que escreveu, tornando sua tarefa interminável.
Quanto aos dias
vividos em Caruaru antes e depois de sua estada em São Paulo não há segredos.
Foram dias e noites em público, cercado de vários amigos, falante e valente.
Era sempre o primeiro a chegar e o último a sair de qualquer evento. Presente e
atuante. Não me lembro de nenhum momento de indecisão ou de silêncio. Preferia
enfrentar um inimigo a omitir-se covardemente. Quando queria falar não pensava
na conveniência do horário ou do local. Ao contrário do seu amigo, que
procurava evitar encrenca, afrontava
qualquer um, de qualquer condição social, intelectual ou física.
Depois da temporada paulistana
voltou para Caruaru, sem explicar claramente o que fizera, pois era preciso ser
sigiloso.
Na cidade em que
iniciou suas peripécias juntou-se aos artistas para desenvolver outra faceta de
sua personalidade: a pintura. Um de seus amigos era o pintor Petrônio Santos,
que o ajudou a aperfeiçoar-se na difícil arte do retoque de fotografias e na
pintura. A convite dele, dedicava-se também à decoração dos clubes, dando aos
salões de baile do Comércio e do Intermunicipal o aspecto festivo que
caracterizava os grandes acontecimentos sociais, como carnaval, festejos
juninos e demais datas festivas.
Com Lycio Neves,
Manuel Messias, Carlos Fernando, Danilo Queiroz, Aluízio Falcão, Arsênio Gomes,
Assis Claudino (Cici), Hugo Martins Gomes (Guri), Fernando Florêncio, Chico
Santino e muitos outros, dividia momentos de poesia ou de serestas, ora
exaltando a mulher, ora festejando uma revolução imaginária. Eram noites de
vigília cívica, com toques de ternura.
Além do elo
político-literário que nos unia quase todas as noites, formávamos uma dupla de
incorrigíveis seresteiros e saíamos pelas ruas de Caruaru. Romero sabia
interpretar todas as valsas e sambas-canções do gênero e eu tentava
acompanhá-lo ao violão, de forma simples, mas pelo menos na tonalidade correta.
Arriscava até alguns solos à Dilermando Reis. Muito antes de Sérgio Ricardo
atirar seu violão sobre a plateia na dramática cena de um festival da Record,
que presenciei ao vivo e a cores (eu estava no auditório do Teatro Brigadeiro
naquela noite), protagonizei cena idêntica, mas sem público. A meu pedido,
Romero cantou o melhor de seu repertório na porta de uma jovem que eu admirava.
Era na rua Duque de Caxias. Apesar de nosso esforço, sentindo-me o próprio
Dilermando Reis, a jovem não abriu a janela. Percebi certa movimentação no
interior da casa, mas nenhuma receptividade. Foi quando atirei o violão com
toda força sobre os paralelepídos. As razões de
Sérgio Ricardo talvez fossem outras, mas tinham o mesmo pano de fundo:
desamor.
Ao fim da década de
60 já morávamos no Recife. Enquanto eu servia à Aeronáutica, Romero trabalhava no
campo, na secretaria assistente do Governo Arraes. Aos sábados, a ida a Caruaru
era inevitável. E mais uma vez nos juntávamos aos grupos que durante o dia
participavam de palestras e encontros pretensamente literários e à noite se
reunia no entorno do Cine Caruaru, onde se concentrava a vida noturna.
Frequentávamos o
Brasileirinho, o Bar do Belo e a Churrascaria Guanabara, onde ponteava o Mestre
Salu, figura da qual não há quem não se lembre, por causa de sua simpática
acolhida.
No capítulo das
presepadas, em que Romero era mestre, é bom relembrar o que ele aprontou com o
Belo, dono de pequeno bar que existia ao lado do Cine Caruaru. Quando não
tínhamos dinheiro, Romero assinava um vale, que correspondia ao popular fiado.
Com o golpe de 64 e consequente debandada para o Rio ou São Paulo, o débito
ficou lá na gaveta, na forma de um maço de papéis de cigarro. Ao voltar pela
primeira vez ao Nordeste alguns anos depois, Romero perguntou a Belo onde
estavam os tais vales, se eles ainda existiam. Belo puxou da gaveta o tal maço
de anotações e Romero ordenou, solene:
- Soma tudo.
E assim foi feito.
Terminada a trabalhosa soma, feita manualmente, veio a ordem, para desgosto do
dono do bar:
- Agora você passa
tudo para um só papel, pois fica mais fácil de guardar. Pago na próxima vez que
vier a Caruaru.
Não precisa explicar
o desgosto do pequeno comerciante, que algum tempo depois viria a falir, não
por causa disso, evidentemente. Ou pelo menos não apenas por causa disso. Na
verdade, Belo era também um boêmio que curtia conosco as noitadas e ainda por
cima era meu primo em segundo ou terceiro grau. Ficou tudo em família.
O golpe de 64 nos
pegou de calças curtas. Eu trabalhava na Última Hora-Nordeste e na assessoria
de imprensa da prefeitura do Recife, gestão de Pelópidas Silveira. Romero era
um dos delegados da Secretaria Assistente do Governo Arraes. Na prática,
trabalhava intermediando reivindicações dos camponeses. Nada impedia, porém, que nos reuníssemos nos fins de semana em
Caruaru.
Romero namorava
Marinete Torres Figueiredo. Levou-a para um convento na Várzea, onde se casou
antes de empreender fuga para o sul do país . Para tanto, contou com a
conivência de um padre amigo, que seguia os ensinamentos de D. Hélder Câmara e
na medida do possível ajudava os esquerdistas. Era o padre Edvaldo, que até
hoje transita facilmente na alta sociedade recifense.
Regularizada a
situação conjugal, o casal foi para o Rio de Janeiro, instalando-se
inicialmente em Vigário Geral. Logo arrumou emprego na revista Manchete, através
do amigo Petrônio Santos.
PAIXÃO INCONTROLÁVEL
Além da mulher com
quem casou, viveu muitos anos e com a
qual teve quatro filhos – Serguei, Gregório, Ivan e Vália - desde muito jovem
Romero Figueiredo teve, e ainda tem, uma paixão incontrolável: a revolução comunista.
Depois que enviuvou e virou ermitão na praia de N. S. do Ó, Paulista, nunca perdeu
o encanto pelas histórias relacionadas com a revolução socialista da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Sua casa é um misto de
atelier e biblioteca, permanentemente reabastecida com “novidades” sobre a
revolução soviética. Para tanto, vai pelo menos uma vez por semana à Livraria
Cultura, Comenta com frequência suas impressões de leitura com o amigo de
infância e juventude Manuel Messias, que por sua vez há anos se dedica à
elaboração de uma biografia de Stalin, devorando tudo o que existe a respeito.
Semanalmente, os dois trocam ideias e atualizam seus conhecimentos sobre o
assunto.
Paralelamente,
Romero tenta rabiscar os principais eventos que marcaram sua vida, elaborando
uma possível biografia. Esbarra na dificuldade de conciliar a narrativa com sua
modéstia, enfatizando que tudo o que fazia.
Romero externava sua
indignação contra o “capitalismo desumano” em qualquer lugar: nos bares, nos
bailes, nas reuniões de pais e mestres das escolas dos filhos, nas reuniões de
trabalho da Manchete ou da Editora Abril, onde quer que estivesse. Depois de deixar
a grande imprensa foi gerenciar o laboratório da Curt, empresa que se
sobressaía no mercado de revelações e confecção de filmes para impressão
(fotolitos). Quando a Curt fechou as portas, juntou-se a alguns companheiros de
trabalho e criou sua própria empresa de fotolitos, para atender um mercado
promissor. A empresa durou uns três anos. Não resistiu à modernização dos
processos de impressão nem a duvidosa capacidade de gerenciamento dos artistas
do retoque e produção de fotos. Seus sócios eram cariocas, trazidos do Rio de
Janeiro para a Editora Abril, inicialmente, e espalhados pelo diversificado e
rico mercado gráfico paulistano.
BANCA DE JORNAIS DEU
CONFUSÃO
Na década de 50 um grupo
de idealistas de Caruaru decidiu criar um ponto de vendas de jornais, revistas
e livros para divulgar o Socialismo. Mais uma vez Romero se destaca, sendo o
mais entusiasta, o mais falante, o mais corajoso e, justiça se faça, o mais
desembaraçado e decidido do grupo”.
Danilo Queiroz da
Silva, cujo pai dispunha de uma oficina, foi incumbido de fabricar uma espécie
de barraca de madeira, algo como uma banca de jornais e revistas, a ser
instalada em frente ao parque Siqueira Campos, esquina da Duque de Caxias com a
rua da Matriz. A instalação da banca foi autorizada pela Prefeitura.
Uma vez instalado, o
ponto de vendas passou a desempenhar seu papel com algum sucesso, servindo ao
mesmo tempo de ponto de encontro da rapaziada. Ali se trocavam ideias e se
conquistavam adeptos.
Não demorou muito para
despertar a atenção da direita, que
passou a pedir intervenção policial. Não encontrando respaldo das autoridades,
alguns rapazes passaram a tentar a destruição da banca, promovendo arruaças e
ameaças de incêndio.
Tomando conhecimento
de uma ação mais violenta a ser deflagrada de madrugada, os amigos foram
convocados por Romero e munidos de paus e pedras e se esconderam no jardim do
parque Siqueira Campos, com o objetivo de impedir qualquer ação dos
direitistas. Alta madrugada, quando um grupo começou a depredar a banca e tentou
incendiá-la, os comunistas saíram da toca e atiraram paus e pedras sobre os
inimigos, botando-os a correr. Todas as tentativas de destruição foram
devidamente rechaçadas, mas a banca não resistiu à ferrenha oposição dos
inimigos.
LEGADO
Na
impossibilidade de fazer uma revolução, Romero Figueiredo arriscou sua
estabilidade familiar e pessoal, em nome de uma ideologia que ainda defende e
apregoa. Sobreviveu com dignidade a eventuais perseguições e injustiças e produziu uma imensa coleção de
quadros, alguns dos quais se encontram espalhados em casas de amigos.
TODA SUA VIDA
1 - O que o levou à pintura?
Não sei. Talvez os rabiscos a carvão na calçada da Praça Juvêncio Maris, onde o velho Pedro corria atrás de mim por ter sujado tudo com meus heróis das revistas em quadrinho. Ou então, a curiosidade da minha professora Florisa, que sentindo a minha vocação naqueles garatujes me ensinara a colorir O Menino Pintor no Fundo de Mar, em sua escolinha, ali naquela praça e talvez com o sonho de me ver no futuro um grande pintor. Mas, quem realmente me influenciou profundamente foi a minha irmã Safira, que sempre acreditou em mim, e fez tudo para me ver estudar pintura na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.
2 - Qual a primeira motivação artística?
Também não sei. Talvez as inúmeras gravuras das banhistas de Renoir, os nus de Bouguereau, como O Nascimento de Venus ou Aurora e tantos outros nus que eram muitos nas paredes da biblioteca de meu pai ou simplesmente uma paisagem de uma vereda escura e cheia de brocados, lianas e velhos troncos cobertos de liquens e musgos que um pintor de Bonito, chamado José Brainer, pintara e presenteara a meu pai. Aquele caminho escuro no meio da mata sempre me levava a divagar e eu me perdia em suas veredas e em seus caminhos tortuosos e ficava ali olhando, olhando e olhando... Mas, nenhum Théu ou nenhuma Olímpia foi tão grande quanto minha irmã Safira, que juntava pacientemente todas as minhas garatujas e rabiscos e os guardava como se relíquias fossem para me presentear quando eu terminasse meu curso na Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro. Nunca terminei esse curso e ela nunca perdeu a fé em mim. Nunca em minha vida conheci criatura tão meiga e tão persistente. Ela me seguiu em todos os lugares e quando tudo me parecia perdido, era ela quem sempre aparecia com seu sorriso terno e me mostrava novos caminhos pondo a mão em meu ombro num gesto que jamais esqueci. Devo a essa criatura o lado meigo e terno que tenho dentro de mim.
3 - Por que você nunca fez da vida artística sua principal atividade, já que sabia de suas inclinações naturais para o desenho e a pintura?
Ora, a vida sempre foi para mim uma aventura errante e eu desprezava as coisas sérias da vida como a arte. Queria viver plenamente e exageradamente sem saber para onde. Sempre quis abarcar o mundo com as pernas sem saber e nem ter nenhuma noção do que fosse a vida. Quis o impossível, o imponderável e o transitório e até hoje não sei o que queria ou o que quero e duvido quem saiba o que quer? Achava que a estrela mais bonita boiava em meu prato de sopa e que as cores da natureza poderiam ser manipuladas quando eu bem quisesse ou entendesse e aí foi meu grande erro, porque a arte é a única expressão seja ela pintura, música, escultura ou literatura, que pode nos dá um sentido ou mostrar que vale a pena viver. E eu a desprezei e perdi todas as oportunidades em conhecer o verdadeiro sentido da vida. Desprezei todas essas oportunidades de revelar os meus dons artísticos e nada deu certo nos outros caminhos. Hoje pago essa ousadia por ter desprezado esses dons que latejavam dentro de mim e eu os joguei na lata do lixo da vida. Troquei tudo pelas farras e a vida continuava a me dá mais uma colher de chá para que eu me recuperasse e eu continuava na mesma impertinência e em propósitos fúteis que não levaram a nada. Bati com a cabeça em lugares nunca imaginados e sempre retornava ao mesmo ponto nebuloso da partida pensando que chegara ao ideal perfeito, ao objetivo comum, ao El Dourado, à Utopia de um Thomaz Moro ou ao comunismo de um Karl Marx. Eu vivia sonhando. Eu misturava amores com ideologia e nessa confusão sem sentido eu me perdia nas turbulências e não sabia o que fazer. Era uma atrapalhada danada que até hoje não pude entender e nem pude me livrar dessas confusões. A vida para mim em vez de surpresas agradáveis era um punhado de coisas agressivas que eu mesmo criava e comia com farinha lambendo os beiços e sentindo o sabor fosse amargo ou fosse doce das coisas que eu mesmo criava. Nunca fui de escolhas nem de predileções e se não abracei a pintura com todo amor e devoção foi porque sempre fui rebelde, irresponsável e sempre vi numa flor fosse vermelha ou amarela ou numa estrela fosse a mais distante ou a mais perto que tudo era a mesma coisa e não valia a pena eternizá-las na arte ou em coisa alguma. A vida era passageira e não valia a pena tantos sofrimentos. Eu nasci para o todo e as partes sempre foram para mim meras abstrações. Eu misturei a dialética de Hegel e não entendi a de Marx e quando fui entender alguma coisa a União Soviética caiu aos pedaços. O importante para mim era beijar sem pensar na forma dos lábios; era sentir os braços e os abraços, os olhos se fechando numa nesga de pestanas e ouvir a palavra mais doce na hora da vertigem. O resto era resto. Eu sempre gostei de amar sem saber o peso que o amor continha e quando dei fé que as coisas não eram bem assim, estava ferrado e me conformei em ser o que sou: Uma figura, apenas uma figura que passou pela vida em brancas nuvens sem deixar sombras ou vestígios do que fui. A única coisa que me deu sentido a vida foi a minha companheira, a minha mulher que sabia me compreender e me ensinou a amar. Ela foi à única que abria os braços e me beijava quando eu estava bêbado; que cheirava as minhas roupas e dizia com carinho que eu tinha um cheirinho gostoso de cabritinho e mergulhava em meu corpo e se afogava em meus beijos. Quando ela se foi eu mergulhei no silêncio para ver se achava alguma coisa parecido com ela; que desse sentido à vida e nunca encontrei esse sentido, nada, nada e nada.
4 - Como surgiu o trabalho de retoque de fotografias em sua vida, a ponto de se tornar sua principal atividade?
Surgiu do acaso. Desempregado depois de 64, faminto durante, antes e depois de 64, de bar em bar e quase louco para viver como um ser humano qualquer, fui a contragosto do Petrônio Santos à Manchete, fazer um teste de desenhista. Era a última chance que eu tinha, pois se nada desse certo a porta estava aberta. A Rua Prado Junior, no Leme, estava ali em minha frente. " - Como fazer um teste de desenhista na maior empresa jornalística da América Latina se tu não sabes porra nenhuma? - Perguntava-me o pintor Petrônio dos Santos com um anúncio na mão de um emprego que ele arranjou de vendedor de picolé na Praia de Ipanema.
- Só te peço que me ensines o caminho da redação da Manchete e deixe o resto comigo.
E fui. A vaga de desenhista já havia sido preenchida.
Minha cara era de angústia era tamanha que o meu entrevistador ou redator, sei lá o que, olhando pra mim, admirado, perguntou:
- Topas trabalhar na gráfica?
Na mesma hora passei a acreditar em Deus!
E esse milagre me fez ir ao maior parque gráfico da América Latina procurar um homem que jamais esqueci: Aniceto.
A sua sala era um luxo só e igual à minha fome. Depois de esperar na antesala, a secretária me encaminhou ao escritório do diretor da gráfica, o senhor Aniceto Jimenez Louzano, um espanhol de cara de toureiro e de poucas palavras. Depois de ler o bilhete que o redator da Manchete lhe enviara, perguntou:
- O que sabes fazer? Conheces fotometria, colorimetria, off-set, rotogravura, gravação em cilindros...
- Porra nenhuma! Sou apenas um revolucionário e meu dever é fazer revoluções e a última que participei deu no que deu. E passei a contar tudo que acontecera comigo.
Aniceto empurrou o birô com os pés, fazendo a poltrona de rodinhas deslizar até a parede às suas costas, e se estendeu no fofo do seu acolchoado cor de âmbar, passando a lembrar sua participação na Guerra Civil Espanhola, lutando pela República, ao lado dos trotkistas e anarquistas até a sua chegada ao Brasil num navio cargueiro e morto de fome.
Atravessamos corredores imensos, salas enormes e salões fantásticos e por onde passávamos todos se engravatavam e corrigiam o porte como se ali passasse o comandante exigente de uma tropa de elite. Chegou até a gerência da Rotogravura e me apresentou ao Helio Pazzini:
- Este é o Romero, filho de um amigo de meu. Faça por ele como se fosse por mim. Daqui a um mês volto para saber dos resultados. – E virando-se para mim:
- Agora, tudo depende de você. – Apertou a minha mão, me abraçou fraternalmente e foi embora.
- Puta que o pariu, que desafio?!
E venci.
Um mês depois o Aniceto apareceu. Examinou todos os meus trabalhos. Fui mandado ao Departamento Pessoal e sem cumprir os três meses de experiência fui promovido e um ano depois era convidado para trabalhar na Editora Abril, em São Paulo, com o triplo do salário mais alto da gráfica; um mês num hotel de luxo para procurar residência e um mês de salário adiantado. No segundo mês comprei um fusca zero quilômetro e dei de presente a minha companheira. Do barraco da Rua do Meio,no Morro do Risca Faca, às minhas experiências com fractais, a descoberta dos efeitos especiais em fotografia e os prêmios internacionais não demorou muito tempo. Hoje, passados tantos lustres, não sei de quem foi à sorte: minha, do Aniceto, que se tornou o mais importante homem das Artes Gráficas no Brasil e me ajudara, ou do acaso e da necessidade. De uma coisa estou certo: A vida ninguém entende e não devemos brincar com ela.
Antes disso, comi o pão que o diabo amassou. Vivi e convivi com os bandidos mais famosos, dancei e me lambuzei com o suor das cabrochas mais lindas nos terreiros de macumba e tive a mulher mais doce que encontrei na vida. E isso eu conto num dos capítulos O Barraco da Rua do Meio, do meu livro em construção. Mas só para te lembrar que nessa época que eu conheci o Aniceto e fiz aquele teste, meu filho Serguei havia acabado de nascer; seu berço era uma caixa de papelão e eu morava numa miséria de fazer gosto com uma garota porreta, corajosa pra caralho; num barraco de madeira de lei entre as mei'águas da Rua do Meio, entre a Ladeira do Sem Fim e o Beco do Zé Ninguém, no Morro do Risca Faca, em Vigário Geral. Quando disse pra minha nega o que havia acontecido, ela se foi pra a Pedra Grande, que era o ponto mais alto do morro, e onde se juntavam os bandidos, e foi falar com as estrelas. Aproximei-me dela e a vi pálida e extremamente fria.
Naquele mundo desconhecido mergulhei de corpo e alma e com todo ímpeto. Queria vencer de qualquer jeito. Conheci Isack Newton e me embebi em sua teoria das cores. No meio dos gringos de todas as nacionalidades conheci suíços, alemães, italianos e espanhóis que eram tidos e havidos como os maiores especialistas em artes gráficas. Em cada área sempre um gringo se destacava e cada um era conhecido como um verdadeiro Deus. Falavam difícil e dominavam todos os ramos da fotocromia e ganhavam dinheiro a rodo. Abusavam da linguagem técnica e esnobavam em conhecimentos químicos e físicos das emulsões fotográficas. Falavam da fotometria,da geometria das esferas, das fontes de luzes, das exposições e das leis da reciprocidade e esnobavam com as tabuas de logaritmos nas mãos, mostrando gráficos e falando do espectro eletromagnético da luz. Ninguém entendia porra nenhuma do que falavam. Eram malandros e intocáveis trazidos da Europa a peso de ouro por Chateaubriand na época que fundara O Cruzeiro. Agora a Manchete os contratara e todos eles ocupavam os postos chaves da Manchete e se tornaram pra mim, um pobre diabo e um comunista de quatro costados, um desafio. Eu vinha com o nacionalismo borbulhando no sangue e com uma vontade imensa de fazer revoluções, sejam lá em que ramo fosse e ainda por cima com a ânsia de me proletarizar pra me tornar um autêntico comunista. A primeira etapa eram os gringos e eu os venci e na segunda que era a minha proletarização onde todo mundo queria se exilar eu permaneci. O escritório de Sinval Palmeira vivia cheio de comunas querendo entrar numa embaixada e se chispar e voltar mais tarde falando estropiado e metidos a besta.
Bem, o resultado é que nem me proletarizei nem fiz nenhuma revolução tecnológica. Primeiro porque me engalfiei com o velho Marx que teimava em fazer da classe operária a parteira da história e confiava nela pra fazer a revolução na Europa. Enquanto a Ditadura matava e esfolava, essa mesma classe operária ficava discutindo se ia desfilar em trajes de General na Escola do Salgueiro ou da Manqueira ou se tornariam ricos com a estreia da Loteria Esportiva. Os únicos comunas que encontrei no meio de centenas de operários vazios ali na Manchete foram dois ou três cariocas que haviam pertencido ao grupo dos 11, de Brizola, e alguns gringos que lutaram contra o fascismo na Europa. E era com esses gringos que discutíamos o eurocomunismo e a nova troika que tomava conta do Poder na antiga União Soviética e desmoralizava o Khushev. O resto, puta que o pariu! Brigavam entrei si pra assistir o Chacrinha, os capítulos de O Fugitivo, furavam as greves e deduravam os companheiros.
5 - Como e porque você decidiu migrar para São Paulo?
Eu nasci no Nordeste e vivi a maior parte da vida em São Paulo. O que posso atribuir a isso?
Espírito de aventura e a luta pela sobrevivência. Com treze anos peguei o Pedro II, um velho navio do Loyde Brasileiro, e chispei sozinho para o Rio de Janeiro. Fui falar com o Café Filho, que era amigo de meu pai e Vice de Getúlio Vargas, para estudar na Escola de Belas Artes, como queria minha irmã Safira.
Sem nenhuma experiência dei com os burros n'água. Nada deu certo e voltei murcho e desmoralizado. Tentei novas aventuras em São Paulo em 1966 e perdi o Centenário de Caruaru em 67 para gozação do pintor Petrônio Santos, que me dizia:
- Oxe, chegaste cedo demais pra o II Centenário?!
E daí, como um Judeu Errante, nunca mais parei de andar. Fui e voltei umaporrada de vezes ao Sul e hoje com 80 anos continuo a ir e vir sem encontrar um caminho certo. Isso se deve talvez às pragas e maldições dos despeitados ou então uma bruta burrice.
6 – Apesar de tudo, seu casamento deu certo. Algo pouco comum entre artistas, você conseguiu manter firme seu casamento com Marinete Torres de Figueiredo, com a qual teve cinco filhos e viveu em harmonia até o seu inesperado falecimento, levando-o à condição de quase ermitão numa praia nordestina. Por que você nunca quis procurar outra musa?
- Quando soltei o seu corpo inerte e todo molhado por minhas lágrimas e vi meus filhos trazerem um caixão para colocá-la não entendi,naquele momento, o porquê ou a razão da vida. Nunca imaginei que um dia tudo ia se acabar. Ela era a única que sabia cantar para mim Com açúcar e com afeto, do Chico Buarque. Ela era a única que falava para suas amigas: O bêbado é meu e ninguém tem nada com isso. Ou quando olhava para mim e dizia em meu ouvido: Venha hoje mais cedo do botequim porque eu quero te amar como nunca te amei!
E eu ficava.
Quando ia todo mês ao cemitério da Lapa depositar um botão vermelho de rosa e ficava ali sozinho olhando seu túmulo não sabia também o que dizer. Eu sou o único ateu que acredita na vida eterna, pois todo dia eu falo com ela. Um dia vim morar novamente em Pernambuco e fui a Caruaru visitar os amigos e reencontrei uma jovem agora velha que me levou a saudade e fizemos amizade e retornamos ao passado na época da Barraquinha Gagarín. Pensei que tudo era como nos velhos tempos. Tredo engano! A presença de minha mulher era mais intensa e o ciúme nasceu. Até que um dia não suportando mais aquela indiferença me apontou a porta e me mandou embora. Que alívio! Nada se comparava. Que absurdo e sacrilégio eu cometi comigo mesmo e com a minha Nete! Não havia nenhuma afinidade, os papos eram vazios e desprovidos daquela seiva, daquele encanto de outrora. E quando me vi novamente só ouvi uma gargalhada e aquela queixa que só ela sabia fazer:
- Não te falei?
Hoje me sinto feliz. Pinto, desenho, escrevo, leio e ando pela praia deserta de Pau Amarelo, caminho ao alvorecer e cochilo na rede ouvindo meu papagaio dizer a única palavra que aprendeu em dez anos:
- Mero!
Por que eu nunca procurou outra musa?
Ora, porque eu profanaria o passado e deixaria de ouvir a sua doce voz toda noite no travesseiro ao meu lado?
Ela ainda vive dentro de mim!
7 – Apesar de valorizar a vida provinciana de Caruaru, onde criou e manteve amizades, você sempre buscou a convivência com grandes personalidades nacionais, através de atividades políticas a que se entregou com extrema dedicação.
Eu fui um revolucionário profissional. Quando Mané foi escolhido para ir a Moscou porque era filho de operário – seu pai era marceneiro – e eu fui recusado por ser pequeno burguês e filho de advogado, fui trabalhar na Folha do Povo, jornal do Partido Comunista de Pernambuco. Trabalhei na Redação ajudando a Graziela a copiar artigos e textos chatos da Gazeta Sindical e de outros informes publicados nos jornais do Partido da União Soviética e nos dias que o jornaleco saia eu ia para a gráfica embrulhar jornais junto com o Rildo Mouta, o Macieira e o Irineu, fazendo pacotes e distribuindo nas bancas conforme o figurino. Ganhava 14 mil cruzeiros por mês e pagava mais da metade na pensão onde morava na Rua Santa Izabel, no Recife. Tinha uma namorada que me enlouquecia e vivia duro. Era uma vida de cachorro, mas eu me orgulhava porque aprendia a ser comunista e um revolucionário profissional. O amor violento e a fome me deram coragem de falar com David Capistrano ajudado por Hiran Pereira e Irineu para que ele me transferisse para o Rio de Janeiro.
E fui.
Na redação de Novos Rumos tinha mais pau de arara do que no Nordeste e não havia vagas pra tantos pretendentes a um emprego de copydesk, foca ou qualquer coisa naquela redação. O Câmara Ferreira vendo a minha triste figura se compadeceu de mim e me levou pra São Paulo para trabalhar na sucursal. De lá fui pra o jornal Terra Livre, onde num furo de reportagem entrevistei Pedro Reneaux, o primeiro dirigente da primeira Liga Camponesa do Brasil e que vivia escondido no Brás. Depois fiz uma outra reportagem com José Jofre, líder camponês que atuava no campo e era muito visado pela polícia de Carvalho Pinto.
Vivia suspirando de amor por Stela e devido a isso e a outras coisas mais fui enviado pelo Dinarco Reis pra trabalhar como Secretário de Luiz Carlos Prestes, talvez como castigo por não dar conta da lição saber ser comunista e viver morrendo de fome ou comendo merda. Emprego sério, rígido e sem frescuras e que não poderia faltar um só segundo aos compromissos do Velho nem beber mais cachaça e nem fazer mais farras. E foi daí que conheci toda cambada do Comitê Central do Partido e os amigos generais e da alta burguesia do Cavaleiro da Esperança, onde entregava braçadas de flores vermelhas as suas madames com cartãozinhos e corbelhas perfumadas aos mais refinados pares da revolução de 30 e 35. Conheci Mariga, Câmara Ferreira, o Toledo, Mario Alves, Apolônio Carvalho e todos os membros do alto escalão do Partido que vieram depois a rompe com o Partidão e se meter nas aventuras errantes que banharam de sangue a nossa pátria; não teve nenhuma ressonância e perdemos a nata do Partido nas torturas e mortes. Nas horas vagas fui também moleque de recado comprando os glóbulos homeopáticos para o Velho, no Veado de Ouro, na Rua São Bento, ou na Pharmácia Especializada que ficava na Praça João Mendes para as suas artrites ou para aumentar seu tonusvigorandum para manter a forma e mais um filho que foi justamente a Mariana, de quando fui trabalhar com ele, em Vila Mariana, em São Paulo. Comprar uma ruma de jornais de todo o Brasil onde tinha de recortar tudo que se relacionasse a União Soviética, ao seu nome ou aos seus feitos heróicos e em segundo plano as notícias do leste europeu e dos partidos comunistas da América Latina.
E pra terminar o dia conversava com a Maria, sua companheira, e com o Rubens, o seu chofer, que aguentavam as trelas do pequeno Yuri ou do Luiz Carlos e ouviam as estórias engraçadas e as mentiras deslavadas que se contavam naquela casa mal-assombrada e de certa forma feliz, apesar de ser a cova do monstro sagrado.
8 – Como você concilia sentimentos artísticos com inclinações políticas?
Esse era meu drama. Nunca conciliei tais coisas. Uma estava no âmago da minha personalidade que era a arte e o outro era consequência da própria vida uma vez que o ser humano sempre foi segundo Aristóteles um animal político.
9 - Você prepara um livro de memórias em que relato não só a minha vida, mas as desavenças partidárias que levaram ao fracasso da luta pela revolução comunista no Brasil?
Relato minha vida porque ela foi bem vivida; cheia de peripécias e complicações e serve muito bem como exemplo aos meus cinco filhos e uma neta que a tenho como filha e a uma porrada de netos e bisnetos. Não é propriamente um livro de memória porque eu não sou um personagem histórico ou uma pessoa que teve uma participação única ou admirável, mas é antes de tudo um desabafo, uma reprimenda. Fui empurrado aos maiores abismos e perigos e soube plainar como uma ave arisca passando por cima de tudo e me mantendo num voo firme, plácido e equilibrado. Tive a oportunidade de conhecer grandes figuras humanas e também muitos filhos da puta, agentes duplos que frequentavam nossas reuniões e nos entregava a sombra e aos arrepios dos interrogatórios torturas e morte. Admirava-me quando lia um livro de um autor ou via uma tela de um pintor ou uma sinfônica no Municipal e ficava sabendo que esses artistas eram do Partidão. Isso me envaidecia em pertencer ao Partido da Classe Operária. Emocionava-se vendo cientistas como Mario Schembergou Belinno Bursa e me encantava quando bebia com Ricardo Bandeira ou ouvia a voz de Taiguara. Cada um em suas respectivas grandezas. Era a ciência e a arte mostrando seu lado proletário e isso me comovia muito. Quando fui ao enterro de Portinari, Rio de Janeiro, em 62, falei ao Paulo Rodrigues que estava comigo, que também havia ido com o Prestes naquela semana no Cemitério da Quarta Parada ao enterro de um comuna que fora personagem de Jorge Amado, em seu livro Subterrâneos da Liberdade. Isso me fazia orgulhoso em ver na terra livre, bem comum, como dizia a Internacional, dois heróis da classe operária sendo homenageado pelas multidões. Eu ficava envaidecido e tinha papo pro mês inteiro. Conheci também, entre outros gênios, Clóvis Graciano, Portinari, Candinho para os íntimos, Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo que também para os íntimos era conhecido como o Di Cacalcanti. - Miguel, um crioulo comportado, companheiro de farras e que trabalhávamos juntos no jornal Terra livre, e que sabia da vida de Deus e do mundo, me dizia confidencialmente que Di , era simpatizante, mas nunca foi de base, porém a antropofágica Tarsila do Amaral, autora do Abaporu sim, essa era comuna, fora operária da construção civil e pintora de paredes na França; fora também a União Soviética, estivera presa e era de base como fora também Mario de Andrade. - De base ou da base, era uma expressão que o Miguel usava pra identificar quem era ou quem fora de uma base ou célula do Partido Comunista. Miguel, fora a figura mais interessante que conheci dentro do Partido. Depois de 64, ele foi preso juntamente com Jacob Gorender e outro amigo meu o Rabota, o Genésio e ambos deram bons exemplos de como se portar na prisão amte a tortura. E é justamente por isso que falo de comunista e de estar de comunista em minhas memórias. Comunista têm em todos os lugares e a prova disso é o PT, mas um Bukharin, um Trotski ou um Lenine são poucos e talvez por isso houve a débâcle, e tudo ruiu, tudo se desmanchou ou foi para o beleleu. Mas quem sou eu pra julgar um panorama tão imenso? Sou apenas um tijolo na construção do degrau e pouco sei da história da construção do grande edifício do socialismo ou do comunismo, mas o importante pra mim é que nas entrelinhas eu participei com os ouvidos, com os olhos e com minha timidez. Ouvi segredos terríveis. Mas, deixa pra lá senão não tem graça meu livrinho de recordações.
Minha casa também foi abrigo de muitos comunas e não só me honra ter abrigado um Marighela, um Gregório, um Nestor Vera, um Lindolpho Silva, mas em abrigar um companheirozinho anônimo que vinha de longe trazer a sua contribuição a fim de enviar um a um aqueles gigantes para o exílio. E muitos, antes mesmo de alguns desses heróis partirem para a União Soviética ou para os países socialistas, morriam na tortura como o Nestor Vera, Mario Alves, Hiram Pereira ou Capistrano. E assim eu assistia calado como se fosse aquele Observador Noturno, Rastif de La Bretone, tão bem descrito por Rouanert, em suas passagens silenciosas nos meandros da Revolução Francesa.
A luta armada chegara ao fim à revelia da minha existência. Nenhum de meus filhos sabia quem eram aqueles homens e minha companheira jamais soube dos seus verdadeiros nomes. Trabalhei durante 16 anos na Editora Abril e nenhum amigo ou companheiro sabia que eu era comunista ou que minha casa era um aparelho do Partidão. O tempo passava e todo sábado em meio àquela turbulência em esconder alguém ou trabalhar sutilmente pelo Partidão apareciam o Danilo Queiroz, o velho metalúrgico, e o Flávio Tiné, com o seu violão debaixo do braço, e bebíamos e farreávamos o dia inteiro.
E assim, passei anos e anos sem nunca deixar de ouvir o Flávio Tiné - que hoje me entrevista - naqueles acordes de violão em que todas as cordas vibravam de uma só vez e à força de muita cachaça pra que eu entrasse no ritmo com todo pulmão e cantasse A Volta do Boêmio, sucesso do velho Nelsão. Seguia-se daí o grito de desespero da minha companheira na cozinha preparando as sardinhas para o tira-gosto:
- De novo pô!...
Era a milionésima vez que eu cantava completamente bêbado Boemia...
Fim
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Sugestão para orelha:
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Sugestão para orelha:
RECONHECIMENTO
Aos treze anos ele deixou Caruaru, pegou um navio sozinho com
alguns trocados e foi parar no Rio de Janeiro com um propósito: estudar na
Escola Nacional de Belas Artes. Contaria com a ajuda do vice-presidente da
República, Café Filho, por acaso amigo de seu pai, advogado Henrique Figueiredo.
Deu com os burros n´água.
Mais tarde tentou São Paulo. Com apoio dos companheiros do
Recife assumiu o encargo de segurança de Luís Carlos Prestes, com quem morava, ao
mesmo tempo em que trabalhava como repórter do jornal Terra Livre. Na verdade,
fugia de um amor impossível, que ameaçava transformá-lo em inútil apaixonado à
moda de Shakespeare. Deu certo. Conheceu os principais líderes e aprofundou-se
em questões políticas.
Mas acabou voltando para o Agreste pernambucano, desta vez
para continuar o curso secundário e dedicar-se à decoração dos clubes locais
com o amigo Petrônio Santos. Certa vez, ao decorar as ruas da cidade como
contratado de uma empresa de bebidas, ganhou como pagamento uma caixa de vodca,
tudo o que não queria para novamente esquentar a cabeça e fazer serenatas, como
um quase-tenor.
Em 1964 esgueirou-se novamente para o Rio de Janeiro, após
casamento às escondidas, iniciando vitoriosa carreira de artista gráfico na
Manchete e em seguida na Editora Abril em São Paulo. Teve cinco filhos, vários
netos e bisnetos. Quando ficou viúvo, recolheu-se a um modesto estúdio em N. S.
do Ó, município de Paulista, onde não mais pinta o sete, como antigamente, mas
mantém incólume sua utopia. Este é Romero Figueiredo,
cuja obra vem finalmente a público para apreciação e reconhecimento.
NEM SEMPRE FAMA É QUALIDADE
Ele nunca esteve como expositor numa bienal de artes, nunca
apareceu no Jornal Nacional, tampouco foi sequer citado pelos críticos de arte
renomados do País e muito menos do Exterior. Ao contrário, trabalhou a vida
inteira como artista gráfico – na Manchete, na Editora Abril, na Curt e por
conta própria numa microempresa de fotolitos que não prosperou.
Ao mesmo tempo, buscava no fundo da memória as lembranças
mais remotas para transformá-las em maravilhosos quadros a óleo que ia
acumulando em suas paredes de ermitão inconformado, lá pelas bandas da praia de
N. S. do Ó, em Paulista (PE), bem ao lado da imponente igreja católica do
bairro, na qual nunca entrou.
Quem o visita, percebe o desarranjo típico do homem que mora
só, situação amenizada por uma
diarista. Antes de preocupar-se com os aspectos práticos da vida, ele sai logo
cedo para longo passeio na areia da praia, andando vários quilômetros em
meditação.
Assim é a vida de Romero Figueiredo hoje. Ele gosta de
homenagear os amigos com retratos, como fez com Fernando Florêncio e Iaiá,
Assis Claudino, Hugo Martins Gomes e Flávio Tiné, entre outros.
(fotos)
Fernando
Florêncio
Iaiá Bené Florêncio
Assis Claudino
Hugo Martins Gomes
Flávio Tiné
A ARTE DE PINTAR
Pintar é uma Arte
muito especial. Só alguns privilegiados nascem com a capacidade de pincelar
algo que desperta a sensibilidade e chama a atenção do espectador por sua
beleza explícita ou escondida. Há os que defendam que a arte de pintar, fazer
poesia ou música pode ser ensinada, mas nenhum professor poderá levar alguém a
produzir uma obra prima se o estudante não for um artista nato, cuja
sensibilidade dará forma a uma obra de arte.
Há também o mito de
que todo artista é meio louco, quando não completamente. Alguém esquisito, de
hábitos estranhos, bêbado contumaz ou alguém que despreza o ambiente em que
vive. De fato, a História está cheia de estranhos personagens que viveram
momentos horríveis e transformaram seu sofrimento em obras de arte. No caso,
são exceções, como seres humanos e na forma de exteriorizar suas emoções. Na
verdade, a grande maioria dos artistas vive em sociedade, em harmonia com a
família e em santa paz, como no caso de Fernando Florêncio e Romero Figueiredo.
Ambos trabalharam normalmente durante anos, executando tarefas convencionais em
seus respectivos empregos, casaram e tiveram vários filhos. Como ninguém é de
ferro, tiveram seus momentos de orgia, exercitaram suas dúvidas e enfrentaram
seus fantasmas. Mas quando queriam exercer a plenitude de suas intenções,
recorreram ao pincel e às tintas. Misturam as cores ora de maneira coerente,
ora em desalinho; ora na paz de espírito, ora com o diabo no corpo, como se
quisessem mandar um recado para os maus espíritos.
Pintor é um poeta
sem palavras, um músico sem harmonia ou um médico com um bisturi que vai
cortando a alma com a sutileza de um cirurgião. Pode ser que o leigo não
entenda seus traços, mas sempre haverá que percebe a delicadeza de um corte ou
a sensibilidade de corpo. Se é difícil classificar a arte de cada um conforme
as diversas nomenclaturas existentes na literatura pertinente, não o é quando
se deseja apenas reconhecer o valor de seus traços.
Por outro lado,
sabe-se que todo artista clama pelo reconhecimento e sucumbe ao perceber
qualquer sinal de desagrado. Suponho que não se trata de fricote e sim da dor
natural de quem se deu por completo e não obteve o resultado desejado.
Fernando Florêncio
e Romero Figueiredo fizeram de Caruaru e sua gente a razão principal de suas
respectivas artes. Embora tenham seguido rumos inteiramente diversos,
profissionalmente, mantiveram o mesmo gosto pela rememoração de figuras da
cidade em que passaram a juventude e viveram as aventuras da mocidade em flor.
Pode ser que seus quadros a óleo não sejam parecidos, pois cada um tem sua
maneira de retratar o mundo em que viveram. Ambos, com certeza, são como irmãos
que um dia comungaram na mesma igreja e rezaram na mesma missa. Amém.
Cadê a história da fuga, onde o jangadeiro o deixou em um banco de areia pensando ser terra firme, ao amanhecer com a maré subindo bateu o desespero.
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