VIDA DE MÉDICO



Houve um tempo em que, segundo depoimento de Ariano Suassuna, havia apenas três opções para o cidadão escolher uma carreira: engenharia, medicina e direito. Quem sabia fazer conta escolhia engenharia; quem gostava de abrir barriga de lagartixa estudaria medicina; e quem não sabia de nada se tornaria advogado, caso dele. O depoimento faz sucesso até hoje nas mídias sociais. O escritor fala de poucos anos atrás, 50 talvez. Hoje é diferente. Cada Universidade oferece opções com desdobramentos inimagináveis.
Morando em pequena cidade onde a atração principal era um rio onde nadávamos sem medo, um céu azul onde admirávamos as estrelas e um cinema onde víamos Rim-tim-tim, não estava em nossas preocupações a escolha de uma profissão. No Ginásio, a única preocupação na época era passar de ano, decorando operações de aritmética e regras de Português. Um médico deixava momentaneamente seus afazeres no único hospital local para cumprir um programa de Francês e um pastor protestante ensinava Latim. Era só.
Muitos anos depois viria a conhecer em detalhes a vida de um médico. Ao contrário do que muitos pensam, não é fácil. Tem muito mais sacrifício do que glamour. Logo no vestibular disputa uma vaga com enorme dificuldade. Na faculdade, estuda dia e noite, dá plantões, passa fome, enfrenta colegas e professores invejosos e participa de inevitáveis casos de sobrevivência duvidosa ou improvável. Casos de suicídio não são divulgados. São poucos, mas existem, como casos de desistência. Um dos mais curiosos que testemunhei foi o do Dr. Ryoki Inoue. Formado pela Faculdade de Medicina da USP, militou como cirurgião no pronto socorro do Hospital das Clínicas da própria escola, até abandonar o emprego e se tornar escritor. Pode não ser o melhor, mas é o mais prolífero do mundo, entrando no Livro dos Recordes como autor de mais de mil romances. Montou sua própria editora, que edita seus livros e também de amigos.
A maioria dos médicos tem uma vida de sacrifícios, dormindo pouco e desfrutando nada ou quase nada da vida. Enfurnados em centros cirúrgicos, laboratórios, enfermarias ou arquivos, dedicam boa parte de seu tempo a dar explicações a familiares de pacientes internados. Explicações que nunca são entendidas, devido à sua natureza essencialmente. A peculiaridade do trabalho leva o médico a casar com um colega de profissão. Geralmente dá certo, mas nem sempre.
Mas esse não é, ainda, o maior problema. O mais grave é quando ele entende de aumentar de forma exagerada seu patrimônio, levar “uma vida de luxo e riqueza”, como se diz vulgarmente, passando por cima de tudo e de todos. Felizmente são casos raros. No Interior do país não é difícil encontrar o médico de família, o que atende de graça, o vizinho solidário que atende altas horas da noite, e até o que às vezes vira veterinário, em casos de emergência.
A recente decisão judicial que permite o lançamento de biografias sem autorização do biografado ou seu representante legal dá margem ao aparecimento de uma enxurrada de livros do gênero. São poucos, porém, os que se interessam em focalizar a vida de um médico. Geralmente são eles mesmos que os escrevem, ou pagam a um profissional para fazê-lo (ghost-writer). Difícil mesmo é evitar o viés do endeusamento.
Felizmente, de vez em quando algum jornal aborda o trabalho de um médico, mostrando sua verdadeira vida de sacrifício. Mas a reportagem é efêmera. Sua repercussão limita-se aos fatos do dia. Além disso, como se sabe, os profissionais mais autênticos não gostam de exibir suas atitudes, mesmo sabendo que essa divulgação seja benéfica para a humanidade. Em respeito a esses verdadeiros cientistas não cito nomes, mesmo porque seria tarefa dificílima. O fato é que vida de médico é mais difícil que encantadora.  

(Publicado na revista MEDICINA SOCIAL, da Abramge, 2016).

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