OBRIGADO PELA SOBREVIVÊNCIA
Faço tudo ao
contrário de todo mundo. Não tenho projetos, não vou atrás de nada e há muito
desisti de sonhar com meus botões. Claro que já fiz tudo isso. Cheguei a usar
óculos tipo fundo de garrafa, sem grau algum, só para impressionar. Quem me
visse deveria pensar que eu era um intelectual, diferente dos mortais, e quase
era, pois lia dois jornais por dia na tentativa de descobrir a diferença entre
eles.
Ontem fui a
uma praça que se chama Por do Sol, obviamente para ver o sol desaparecer no
horizonte. Fiz algumas fotos como todo mundo faz. E me deixei levar pelo
silêncio, perturbado apenas pelos aviões que passavam em direção ao aeroporto, um
atrás do outro, quase um desfile.
Os casais
ignoravam a paisagem, preferindo olho no olho, boca na boca, perna com perna,
só de olhar quase chorei de inveja. E me lembrava de quê? Da praça no Interior,
da praia no litoral, do baile no clube, dos tempos que não voltam mais. Já não
faço ao contrário de todo mundo, sou igual a todo mundo.
Por cinco
vezes me apagaram tão completamente que não pensei que voltaria a ver o por do
sol, tampouco o sol nascer. Na última vez, indignado, tirei os tubos,
inconformado com o sofrimento que me impuseram para prolongar um pouco a minha vida.
Debati-me por alguns momentos, até ser contido com remédios. Conseguiram
acalmar a mais calma criatura do mundo.
Pergunto a
mim mesmo coisas inconfessáveis, inclusive o que vale a pena. Sem conciliar o
sono, apelo para o rádio e além de música de qualquer qualidade fico ouvindo o
diálogo entre locutores e seus ouvintes, que repetem mensagens de autoajuda.
Haja mensagens. Nas despedidas, fica com Deus é o que mais ouço.
Ao mesmo
tempo, vejo filmes em torno do passado, cenas da juventude, da maturidade ou de
alguns dias atrás. Sonho voando de braços abertos, entre prédios, cenas de
cinema. Segundo sobreviventes, esses
sonhos são comuns quando alguém está nos últimos momentos.
Admitindo
como verdade, eu já teria morrido várias vezes, pois passa um filme na minha
cabeça todas as noites, ao sair do sono profundo. São segundos ou minutos que
duram uma eternidade. Assim, não saberia dizer quantas vezes morri.
Talvez seja
melhor abandonar o tom quase funéreo dessas assertivas e saudar os primeiros
raios da manhã. Repetir chavões tipo ainda há esperança, é preciso acreditar em
alguma coisa, não custa sonhar...
Talvez seja
melhor agradecer. Pela sobrevivência, obrigado.
Comentários
Postar um comentário