TUDO AO REDOR
No andar de cima alguém parece estar
batendo bife; pelo barulho, só pode ser carne de jumento. Na calçada, carrinhos
com rodinhas de borracha recolhem o lixo diário; já pensou se as rodinhas
fossem de madeira? Outro barulho que vem de cima é o de helicópteros. A cada
minuto um deles passa em direção à Marginal Tietê, provavelmente para filmar o
trânsito infernal. Em São Paulo, toda emissora de televisão que se preza dispõe
de um desses monstrinhos – na verdade mais de um - que ficam o dia inteiro
sobre o meu apartamento, provavelmente rota obrigatória que deve
necessariamente ser seguida, antes de filmar motoqueiro caído no chão,
congestionamento, sequestro ou assalto. Isso não é mais uma rotina. É rotina da
rota.
Enquanto isso, vários autores sobre a
mesa: Daniel Aarão Reis (Prestes), Janes Rocha (Taiguara), Sandro Vaia (Armênio
Guedes), Júlio Maria (Elis Regina), Fernando Moraes (Olga)... Como se vê, adoro
biografias. A melhor é a de Che Guevara. No entanto, mesmo com simpático
autógrafo do autor, Jon Lee Anderson, que em agosto de 1997 conheci
pessoalmente, por deferência da editora Objetiva, não deu ainda para degustar totalmente
sua íntegra: 920 páginas. É que na ânsia de não deixar nada de fora, o autor
descreve até a insônia da irmã dele, Beatriz, enquanto Che, ainda jovem, estudava
noite inteira, em Buenos Aires. Preocupada com os eventuais ataques de asma,
ela aprontava chás que supunha milagrosos.
Em tempos de internet, convenhamos,
torna-se cada vez mais penoso deitar os olhos sobre essas maçarocas biográficas,
ainda que persista o lúdico. Como o jornal, o livro continua sendo motivo de
prazer. Há quem o aprecie até pela capa, ou só pela capa, para glória de Moema
Cavalcanti, que logo mais entrará no ranking mundial como a capista mais
profícua.
Antes disso, devo entrar no livro dos
recordes como o mais paciente, o homem que venceu desafios e agressões não
explícitos, o que mais deu a cara para bater sem queixar-se ao bispo, tendo
como consolo a voz de Elis Regina e de Mônica Salmaso, o violão de Baden Powell
e os concertos da OSESP. Foi na Sala São Paulo, aliás, que tive a oportunidade de
conhecer o simpático velhinho que todos os sábados chegava e saía sozinho e em
silêncio. Conhecia-o de algum lugar, alguma fotografia, tinha certeza. Uma
tarde, quando não resisti e perguntei seu nome ele não se fez de rogado:
Armênio Guedes. Era ele, o nosso Che romântico.
Entro como recordista de dores
insuportáveis e incuráveis. Ainda ontem sofri com o espancamento de professores
do Paraná e a mordida do repórter fotográfico da TV Bandeirantes por um cão
descontrolado. Senti em minha própria perna. Reivindicações, sejam quais forem,
só podem ser justas. Querem tirar direitos de aposentados, onde já se viu? Ah,
sim, já se viu, ou se está vendo, na área federal, onde também tentam cortar
direitos trabalhistas consolidados há anos, e isso nas barbas do governo que
defende os trabalhadores. Haja sofrimento. Não bastam a escravatura, o
genocídio armênio e o extermínio dos judeus - temos que assistir espancamentos
da polícia, gente como nós, nossa própria gente, todo dia, toda hora, sob os
olhares complacentes das autoridades ditas competentes. Tudo ao nosso redor.
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