MEMÓRIAS DA RUA DUQUE

Na década de 50 tive a sorte de morar bem no centro, onde bastava por o pé na rua para presenciar os mais banais ou importantes acontecimentos e conviver com os mais famosos ou desconhecidos moradores da cidade. Na própria rua Duque de Caxias bastava dar alguns passos para encontrar o Dr. Galvão Cavalcanti e ficar no maior lero-lero. Ele era aquela figura simpática que abordava o primeiro que entrasse na Livraria Estudantil para oferecer livros ou produtos de papelaria, sem obrigar a comprar nada. Jamais conheci figura igual, nem na Livro 7, livraria outrora famosa da rua 7 de Abril do Recife, onde Tarcísio Pereira se notabilizou como livreiro. A Estudantil resiste, na figura igualmente simpática de Ivan Galvão.
Não longe dali, trabalhei algum tempo no cartório de registro civil de Fernando Silva e Terezinha Dowsley. Era na rua Vigário Freire, onde um dentista, candidato a vereador, levava dezenas de potenciais eleitores para fazer registro de nascimento, que os habilitava a retirar título de eleitor. Certa vez queixei-me de dor de dente. Grato pelo rápido e eficaz atendimento, o profissional me levou ao consultório e extraiu três de meus dentes. Anos depois descobriria que bastava ter obturado. Santa ignorância, a minha e a dele. O castigo veio a cavalo, como se dizia antigamente: ele não foi eleito. Não há informações de quantos dentes relativamente saudáveis ele extraiu dos matutos.
Na mesma Vigário Freire havia um escritório de veterinária, na verdade uma repartição pública do Ministério da Agricultura, chefiada pelo médico veterinário José Afonso de Souza. Prestei a ele meus serviços de datilógrafo, preenchendo cuidadosamente relatórios sobre suas atividades, principalmente vacinações contra a febre aftosa. Ele me levava ao campo, num jeep, para anotar e conferir a quantidade de animais imunizados contra a doença. Até aprendi a manipular a agulha. Ele tratava os animais com enorme carinho, profissional dedicado que era.
Certa vez uma senhora da sociedade trouxe um brilhante cantador que nos últimos dias andava deprimido, não cantava, não comia, deixando-a também triste e preocupada. Queria que o médico o tratasse. Zé Afonso pediu que deixasse a gaiola e voltasse dia seguinte.
Quando ela voltou, ele mostrou as vísceras do pobre canário e comparou-a com as fotos de um grande livro de anatomia, onde se podia identificar as doenças mais comuns.
-- "Ele morreu disso" - explicou o veterinário, mais didático impossível, comparando as vísceras do animal com as da foto. A mulher caiu em prantos, mesmo assim quis pagar pelo serviço, que o profissional dispensou, naturalmente. "Imagine, não foi nada"...
Meu relacionamento com Zé Afonso se deteriorou quando ele foi ao Recife, numa sexta-feira pela manhã, e deixou o jipe da repartição num posto de gasolina para lavar, lubrificar, trocar óleo, etc. Preveniu-me que ao fim do dia o frentista traria o veículo e o deixaria na porta. De fato, o carro chegou, limpinho e de tanque cheio. Naquele tempo a gente podia deixar o carro estacionado em pleno centro comercial!
Fechei o escritório e fui ao encontro dos amigos no bar do Belo, a poucos metros dali, numa pracinha aos fundos da casa de Alfredo Gomes. Algumas doses depois veio-me a ideia de pegar o tal jipe, enchê-lo de amigos e ir para o Night. Tinha gente até no estribo. Passamos a noite por lá e ainda fui capaz de levá-los pra casa, um a um, de bairro em bairro. Não me perguntem como, mas levei, quebrando o escapamento na buraqueira. Dia seguinte, demissão sumária por justa causa. Eu não sabia dirigir.
Voltei a frequentar a Estudantil e a Ótica Globo, aonde também fazia um lero-lero com Ivanildo Santos e seu empregado, Carlos Fernando. Sim, o mesmo que mais tarde ficaria famoso como compositor. Irmão de Manuel Messias, Danilo e Maria.
Onde hoje se encontra a Catedral, modernidade desnecessária, havia o Jardim Siqueira Campos, onde a juventude desfilava e iniciava namoros. Ao voltar das serestas, eu deitava no jardim para olhar as estrelas e acordava com o sol na cara, anunciando o novo dia.


(18/05/2015)

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