MEMÓRIAS DA RUA DUQUE (II)

Saía do número 98 da rua Duque de Caxias e pela mesma calçada chegava ao estúdio de Murilo Rego na praça Coronel Porto. Não era bem um estúdio e sim uma sala com tapete, onde ele dava aulas de jiu-jitsu. Aos 16, 17 anos, gostava de aprender os golpes para livrar-me de contratempos como as eventuais brigas nos bailes do Comércio e do Intermunicipal, quando esquentava a disputa por supostas namoradas.
Certa vez tive de enfrentar um dos mais respeitados arruaceiros da cidade em pleno baile de carnaval no Clube Intermunicipal. Não tinha a menor chance de vencê-lo, exímio boxista que era, mas consegui desvencilhar-me dele mediante um golpe simples, ou seja, colocando minha perna direita por trás das pernas dele e empurrando-o rapidamente. Foi o suficiente para dar tempo à turma do deixa-disso acabar com a briga.
Nesta mesma rua Duque empunhava o violão depois da meia-noite e acompanhava o amigo Romero Figueiredo nas valsas de Silvio Caldas ou nos sambas de Nelson Gonçalves. Romero soltava a voz, devidamente aquecida por algumas doses de alguma coisa, e dominava o silêncio como um autêntico trovador.
Não conseguíamos ir muito além disso, diante do desinteresse das lindas filhas do Dr. Romeu Loyo, que sequer abriam as janelas, e dos demais vizinhos, que protestavam contra o incômodo barulho. Até que, numa dessas noites, ofendido com o suposto desprezo da amada, joguei o violão para o alto e deixei-o espatifar-se nos paralelepípedos.
Meses depois recebo convite para o casamento de uma delas, justamente a que mais admirava por sua beleza. Ela fez questão de me entregá-lo pessoalmente. Não me privei de acompanhar a solenidade com toda discrição e o maior respeito. Como se tudo aquilo fosse normal. Sobrevivi.
Da mesma rua, só atravessando a calçada, segui certa vez para a Sorveteria Lyro, a poucos metros, de onde sairia a mudança para o Recife num caminhão. E lá estávamos eu e Delmiro sobre a carga e a irmã dele na boléia. Devidamente instalada em Casa Amarela, lá estava todos os sábados para jogar xadrez com a suposta namorada. A jogatina se repetiu durante o ano inteiro, ou quase, até o dia em que achei estranho minha doce adversária dançando com outro jovem, na maior intimidade.
Questionei então o suposto cunhado. Indignado, quis saber que diabo era aquilo, minha namorada aos amassos com outro cara! Ele não teve outra alternativa a não ser explicar o que sua irmã já antecipara, prevendo o problema: eu jamais dissera algo a respeito. Não manifestara qualquer interesse, não dissera que a amava, não a pedira em namoro ou casamento, nada. Para mim eram favas contadas, diante do carinho com que ela me tratava e de toda relativa intimidade. Para ela, provavelmente, eu era o trouxa da rua Duque.
Foi dali também que certa vez o prefeito de Jataúba, José Lopes de Siqueira - que depois viraria meu sogro - me resgatou em abril de 1964 e me levou em seu jipe para algum lugar da Serra Velha. Como se sabe, aquele distrito sempre foi um reduto da família Tiné. Lá moravam meus avós paternos, lá nascera meu pai, José Francisco Tiné, também conhecido como Dedé Sacristão, e quase todos eram Tiné. O objetivo era me esconder na casa de um tio, fugindo da perseguição policial em torno de perigosos subversivos.
Assim, quando alguns investigadores bateram na porta da rua Duque de Caxias, 98, dias depois, minha mãe respondeu com toda a segurança que não sabia onde eu estava, não tinha a menor ideia.
Só aguentei um mês a solidão da Serra Velha, em cuja casa não havia ainda luz elétrica nem água encanada. Em maio, quando caminhava à toa pelo centro do Recife, fui levado para o buque da rua da Aurora onde passei um mês dormindo ora num banco de madeira, ora no chão, em nome de um sonho. Ao sair da prisão, voltei mais uma vez à rua Duque, de onde saí numa Kombi com outros onze homens que iam comprar jeans no Brás, São Paulo, aonde moro até hoje.


(19/05/2014)

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