MEMÓRIAS QUASE ESCRACHADAS




Ao acordar no centro pós-operatório tentei desesperadamente me livrar dos tubos e de tudo o que me prendia àquele leito insuportável. Se não consegui totalmente, arranquei os tubos, literalmente. Os médicos me apagaram novamente e quando abri os olhos meus pés e minhas mãos estavam amarrados, como fera abatida com narcóticos. Esta a lembrança recorrente dois anos depois de uma cirurgia para corrigir um estrangulamento de medula, causada por artrose da coluna cervical, que prenunciava paraplegia.
Na verdade, era a quarta vez que enfrentava os bisturis, ao ponto de alguns amigos, menos versados em Medicina, me chamarem de biônico, por causa das próteses na coluna. Menos, amigos, menos.
Tão ruim quanto esta inesquecível  experiência foi retomar os teclados do computador, nos quais me considerava quase mestre, e as cordas do violão, em que fui eterno iniciante e apaixonado. Daí, me impus a ideia de escrever uma crônica por dia, seja lá sobre o que fosse, ao menos como exercício para treinar os dedos, vitimados por leve insensibilidade diabética. Durante o período de recuperação pós-operatória repetia o que virou um quase um refrão: é o fim da picada. Tudo para mim era o fim da picada. Não sentia dores, graças provavelmente aos medicamentos prescritos, nem tinha disposição para ler ou assistir à TV, à minha frente 24 horas, mas lembro quando em edição extraordinária foi noticiado o suicídio de Walmor Chagas. Assim que o intensivista se aproximou não perdi a oportunidade.
“Aí está uma boa ideia”, comentei em tom de brincadeira, ao que o médico retrucou com frases de consolação, tipo isso vai passar, seu corpo está passando por transformações, você vai notando aos poucos. Tudo o que ele me falou à época é mais ou menos o que disse a Raymundo Carrero um dos seus cuidadores pós AVC e acabou virando o título do romance mais recente, “O senhor agora você vai mudar de corpo”. Como se sabe, o livro está vendendo muito bem e a Record já deve estar providenciando segunda edição. Quem sabe o primeiro parágrafo deste comentário seria o livro que não escrevi!
De qualquer maneira, coloco à disposição dos eventuais leitores o resultado de lembranças esparsas e sem cronologia. Chamo-as de memórias escrachadas, à medida que reproduzem a verdade dos fatos, por não conseguir romancear o que mereceria mais profundidade. Ao fazer uma espécie de apresentação, o escritor Fernando Portela chamou a atenção para o fato de que tais memórias podem ser escrachadas, mas nem tanto.
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O livrinho “Memórias Escrachadas, mas nem tanto”, pode ser solicitado à Cia. Editora de Pernambuco  – CEPE, que concedeu a honraria de me incluir em seu valioso catálogo. 

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