1964, MEU CARMA
Quando me mudei de mala e cuia para São Paulo não estava
decidido a buscar sucesso profissional e financeiro, no melhor estilo dos migrantes
e imigrantes que sonhavam com melhoria de vida e enriquecimento. Estava
interessado apenas em fugir da perseguição policial em torno dos que apoiavam
de alguma forma o Governo Miguel Arraes de Alencar em Pernambuco. A partir de
1º de Abril de 1964 figuraria numa relação de procurados pela polícia política,
que o coronel Hélio Ibiapina Lima estimara em 892, só em Pernambuco, no dia 18 de outubro daquele
ano.
Não seria tampouco mais um pau de arara, desses que vinham trabalhar
na construção civil em troca de alojamento precário e salário de fome. Afinal,
já era jornalista, com o devido registro profissional, habilitado, portanto, a
exercer uma função supostamente nobre, prestigiada, quase educativa e bem
remunerada. Afinal, pesquisa publicada na década de 60 mostrava que as duas
profissões de maior prestígio no Brasil eram as de médico e jornalista.
De fato, minha chegada à Capital paulista tinha sido igual à
de um pau-de-arara apenas no aspecto financeiro. Deu-se numa velha Kombi com
mais dez homens e desembarquei na Rua Cavaleiro, onde me hospedei em hotel do
mesmo nome. Na época, todo nordestino desembarcava no Brás, com dinheiro
suficiente apenas para sobreviver dois ou três dias.
Dois anos antes conhecera em Havana o escritor Caio Prado
Júnior e seu filho, Caio Gracco Prado, com os quais percorrera a ilha do Caribe
de uma ponta a outra durante um mês. Ao procurá-los e comunicar minha decisão
de tentar a vida em São Paulo, uma surpresa: o filho foi me buscar num carrinho
esportivo - um Interlagos - levando-me para sua mansão nos Jardins.
- Fique aqui até arrumar emprego. Tem cama, televisão e
geladeira, disse ele. Era uma espécie de esconderijo de luxo, na área nobre dos
Jardins, perto da Avenida Brasil. Quando precisava levar o currículo a algum
lugar Caio Gracco me emprestava o dinheiro, devidamente pago ao receber o
primeiro salário da Editora Abril.
Começa aí uma trajetória que se não foi tudo de bom, não se
compara nem de longe com o sofrimento dos que chegam para tentar a vida sem
apoio algum. É certo que tomei muita Sopa Paulista na Avenida São João e muitas
vezes visitei o amigo Ionaldo Cavalcanti na hora da ceia, para forrar a
barriga. Que no primeiro emprego contava com a ajuda de colegas como Marco
Antônio Rocha e Édison Rodrigues-Chaves, que exigia “i” no nome, travessão no
sobrenome e tinha até brazão de família. Outros companheiros ajudaram muito.
Mas a luta continuou por 40 anos, até pendurar a chuteira em termos de carteira
assinada, começar a levar netos na escola e brincar de fazer crônicas, como a
que tirei do baú para aproveitar a oportunidade:
NOS TEMPOS DE ARRAES
Há mais de 50 anos deixava Caruaru no trem da Great Western para servir à Aeronáutica na Base Aérea do Recife. No trem, por mera coincidência, sentei ao lado de Paulo Cavalcanti, que no dia anterior proferira uma palestra na Associação Cultural de Caruaru, então presidida por Assis Claudino, sobre a vida na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Fiquei encantado com a narração, mostrando um sistema onde havia creche, ensino secundário e superior, assistência médica, artes, tudo absolutamente gratuito. Havia até uma Universidade, a Patrice Lumumba, que recebia estudantes do mundo inteiro para fazer cursos superiores, com moradia e alimentação por conta do Governo. Uma maravilha! No trem, com três horas de viagem pela frente, pude ver também, uma a uma, as fotos que o escritor fizera durante sua viagem a Moscou.
Na verdade, já ouvia a rádio Moscou desde menino, em
Gravatá, e não sei honestamente o motivo. Talvez pela curiosidade de ouvir e
conhecer coisas diferentes, ou pela vontade de ser diferente, um rebelde à
procura de uma causa. Por isso também não sei até que ponto as ideias de Paulo
Cavalcanti me influenciaram. Ex-Promotor Público e dirigente estadual do
Partido Comunista Brasileiro, posição que desconhecia, o escritor tinha grande
facilidade de convencer seus interlocutores, com argumentação clara e objetiva.
Pudera! Era também um brilhante advogado, conforme provou depois na qualidade
de defensor de presos políticos e até dele mesmo.
O fato é que a partir de então passei a frequentar reuniões
e conviver com as principais personalidades das esquerdas de Pernambuco: David
Capistrano, Hiram de Lima Pereira, Miguel Baptista, Jarbas de Holanda Pereira,
Antônio Avertano Barreto da Rocha e os líderes sindicais Gilberto Azevedo e
José Raimundo da Silva, entre outros. No jornal Última Hora, onde me iniciei
como repórter político, buscava orientação desses gurus, na função de agitador
cultural voluntário. Devo confessar que nada me era solicitado ou imposto nesse
sentido. Eu mesmo me dera essa tarefa, já que não me agradava colar cartazes,
agendar encontros ou fazer finanças, atividades que considerava menores. Como
jornalista, considerava-me homem de pensamento, um intelectual, portanto, e não
um tarefeiro. Quanta pretensão!
Na Última Hora fazia o arroz com feijão. Setorista da
Câmara, denunciei uma maracutaia ainda hoje comum em todos os parlamentos: a
destinação de uma verba que cada vereador gastava como quisesse, bastando
apresentar nota fiscal. A dica me foi dada pelo vereador José Silvestre, num almoço
de fim de ano à beira-mar, regado a uísque e cerveja. Ele não contava, porém,
que figuraria na reportagem como autor da denúncia, despertando a ira dos
colegas. Para demonstrar isenção, informei que até os vereadores comunistas
Miguel Baptista e Carlos Duarte utilizavam tais verbas. Todos embolsavam cinco
mil por mês, gastavam como queriam e apresentavam qualquer comprovação de
despesas. Ao fim de uma semana de entrevistas e desmentidos, tudo se aquietou
como nas CPIs de hoje.
A propósito desse episódio devo lembrar que dois anos
depois, quando me esgueirava pelo parque 13 de Maio, fui surpreendido por investigadores
armados de metralhadora, que me conduziram à presença do Delegado Álvaro da
Costa Lima. No jipe da polícia, comandando a equipe, estava o vereador José
Silvestre. A equipe me seguira desde a AIP, onde eu costumava jogar sinuca com
o jornalista Claudio Tavares. A esperança deles era flagrar algum encontro
clandestino com outros jornalistas. Na iminência de adentrar na Faculdade de
Direito, considerado terreno intocável, meteram-me no tal jipe. Do buque da Rua
da União só sairia um mês depois. Dormia num banco de madeira, sentado ao lado
de outros presos. Parentes e amigos se revezavam levando almoço, já que o rango
da cadeia era insuportável. Ficou patente que minha prisão tinha sido uma
vingança do tal vereador, e explorei isso no depoimento. Mesmo porque,
objetivamente, não havia nada contra mim. No meu prontuário havia fotos onde eu
aparecia com outros jornalistas que cercavam o governador. Eram pronunciamentos
ou entrevistas coletivas. No meu passaporte havia carimbos e anotações de
entrada e saída de Cuba. Eram de uma visita a convite de Francisco Julião, que
representava o governo cubano em Pernambuco. Queriam saber sobre um suposto
curso de guerrilha que eu teria feito naquele país. Na verdade, ouvira dois
discursos de Fidel Castro, um na Praça José Marti, outro numa recepção especial
à delegação de 120 brasileiros. Havia também um abaixo-assinado em
solidariedade à União Soviética, que de fato eu havia assinado. Nada que me
incriminasse.
Durante 30 dias acenaram com uma espécie de delação
premiada. Seria solto imediatamente se relacionasse os jornalistas do Partidão.
Eram todos notórios, mas eles queriam uma confissão explícita para escrachar
meu nome nos jornais. Resisti.
Aventei, finalmente, minha amizade pessoal com Marco Maciel,
presidente do DCE-Diretório Central dos Estudantes, a quem entrevistava com
frequência. Marco era chefe de gabinete do novo governador, Paulo Guerra, que
arquivou meu processo.
Fui libertado na condição de não sair do Recife. Em agosto
de 1964 peguei um pau-de-arara para São Paulo e nunca mais fui preso.
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