NOVA PAIXÃO
Não me lembro com certeza a
última vez que me apaixonei. Deve ter sido na juventude, quando os pelos
eriçavam com frequência e o olhar se aguçava até diante de um colibri. Andava
cabisbaixo, grossos óculos sem grau, na expectativa de que alguém imaginasse
tratar-se de um espírito em pânico, a busca de explicações.
Só abria a janela depois que todas
as meninas passassem uma a uma ou em grupos em direção ao ginásio. Envergonhado,
espiava pelas frestas o desfile de azul e branco em que as saias plissadas
cobriam totalmente os joelhos.
Não se pode dizer que aquilo era
paixão, salvo a hipótese de que tal sentimento pudesse ser coletivo, paixão por
várias pernas, grupos de pernas caminhando na calçada e eu espionando pela
janela entreaberta, voyeur matuto,
olhos atentos como os de um felino.
Quando minha família mudou de
cidade, por razões que na época não atinava, escrevi as primeiras cartas de
amor. Dizia que a partir de então minha vida seria insuportável, pois não veria
mais aquelas pernas, aquelas meninas, aquelas paisagens de minha rua e do
ginásio. Um par de pernas em particular me fascinava, pois formava um conjunto
harmonioso com o resto do corpo.
Mas, qual o quê. Novas paixões se
sucederam, como se a vida fosse apenas isso, de tal forma que não lembro qual a
última vez nem quantas vezes me apaixonei desde então. Lembrar não é difícil,
só não tenho certeza se aquilo era paixão ou mera explosão biológica.
Durante muito tempo tentei
entender a Mona Lisa, desde a primeira vez que vi o quadro num livro didático.
Desisti de confrontar seu olhar durante memorável visita ao Louvre em 1976.
Afinal, conhecera outras Mona Lisa de carne e osso e nem por isso me apaixonei.
Tive de me conformar com minhas poucas chances, sonhador sem nenhuma base,
ultrajado por sua própria ignorância.
Chego ao ponto em que sinto o
despertar de uma nova paixão. Não é apenas um olhar misterioso que me fascina,
um corpo à Michelangelo, uma voz à Maria Callas ou Elis Regina. Estou
apaixonado pela vida, pelo café com pão, pelo feijão com arroz, pela caminhada
no parque, pelo canto dos pássaros em torno do meu apartamento. Estou
apaixonado pela vida.
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