NOS TEMPOS DE PAI DEDÉ




Igreja Matriz de Sant´Ana, Gravatá - PE

Há relatos no sentido de que a gente assiste a uma espécie de filme da própria vida, antes de morrer. Saindo por uns momentos do estado de coma, as pessoas contam episódios conhecidos dos familiares, que se comovem e vão às lágrimas diante de tais reminiscências. É um fenômeno psicológico, sem comprovação científica. Não sabemos se essas cenas ocorrem de fato ou são apenas delírio, nos derradeiros instantes da existência de cada um.
Formado na matriz de Sant’Ana, onde meu pai era sacristão e eu fui acólito, me afastei da igreja à medida que tive de lutar, e muito, pela sobrevivência. O tempo não me deu alternativa de pensar espiritualmente, envolvido pelos acontecimentos do dia-a-dia dos grandes centros urbanos. Talvez por covardia, não consegui sequer virar ateu. A origem familiar, atávica, não me encorajou a abandonar formalmente a fé cristã. Tampouco a professo.
Essa pequena explicação vem a propósito do que me recordo, quando o assunto é minha terra. Algumas cenas são inevitáveis na rememoração pessoal que, felizmente, não está sendo feita em momento de agonia. Estou diante da tela em branco do computador, usando o teclado com a técnica que me foi ensinada 60 anos atrás por uma professora gravataense, se não me engano de nome Amenaíde. A escola de datilografia não mais existe, mas a casa, sim – a primeira à direita, após a ponte sobre o rio Ipojuca. Foi lá que aprendi a datilografar sem olhar para o teclado, prática que me destacava nas redações por onde passava.
A idéia do curso tinha sido do Cônego José Elias de Almeida:
- Dedé – perguntou ele a meu pai – porque não coloca esse menino na escola de datilografia? Pode colocar. Eu pago. E pagou.
A ponte é outra história. Continua lá. Era onde a meninada se jogava nos dias de enchente, nadando perigosamente entre as plantas aquáticas, que chamávamos de baronesas. Pular não era difícil, pois a água chegava bem pertinho, quase cobria a ponte. Difícil era sair da correnteza e chegar à margem, nadando de forma atrapalhada, sem qualquer técnica. Era preciso muito esforço e sangue frio.
A ponte e o rio até hoje são imagens recorrentes.
Menino ainda, ao abrir a janela de minha casa, a primeira coisa que avistava era a Cadeia Pública. Sabia de cor os dizeres da placa de bronze: Aqui tombou Cleto Campelo. Algum tempo depois conheci a bela história desse herói, contada no livro História de Gravatá, de Alberto Frederico Lins. O tenente do Exército Cleto da Costa Campelo Filho comandava um grupo de rebeldes que pretendia engrossar a Coluna Prestes. Foi vítima de um integrante de seu próprio grupo, quando saía da cadeia, após tentar soltar os presos (só dois quiserem sair), sendo atingido por uma bala.
Ao capítulo sobre Cleto Campelo na História de Gravatá, o historiador Alberto Frederico Lins dá o título de “Símbolo da bravura pernambucana”. O tenente integrava um grupo cada vez maior de jovens descontentes com a oligarquia política brasileira. Era uma luta sem conotação ideológica, que visava apenas mudanças. Os tenentes aderiam à Coluna Prestes.
A bucólica Gravatá não tinha nada com isso.
Outra imagem inesquecível é a linha do trem, avistada do alto dos fícus benjamin que  existiam ao lado e atrás do antigo Grupo Escolar Cleto Campelo, no qual fiz o primário. De lá eram vistos também os chalés da Avenida Joaquim Didier, uma espécie de marca registrada da cidade. Erenice Torres imortalizou esse tipo de construção no livro “Aquele Chalé”, delicioso desfile de lembranças em que boa parte da história da cidade é revivida. Erenice era filha do advogado Elias Torres, que participou ativamente da vida social, autor do Hino de Gravatá e vereador. Uma pena que aquele chalé da rua Cleto Campelo tenha sido demolido.
O livro de Erenice é prefaciado por Admaldo Mattos de Assis, escritor, advogado e ex-vereador do Recife. A este gravataense devemos o registro histórico, em forma de romances, crônicas ou contos, de muitas histórias da cidade, fantasiosas ou não, especialmente nos livros “O Preço da Missa” e “Astúcias da Imaginação”. Em algumas oportunidades ele se refere ao sacristão que durante muitos anos respondeu pelo trabalho singular de convocar os fiés para as missas, batizados e enterros, através do badalo dos sinos colocados na torre da igreja de Sant’Ana. O Sr. Tiné a que se refere, não é outro senão meu inesquecível pai, que também chamávamos de pai Dedé.
A esta altura, torna-se impossível dissociar tais lembranças das procissões que percorriam as principais ruas da cidade, sempre contando com a ajuda inestimável da Corporação Musical 15 de Novembro, sob a regência de Manoel Bombardino, cujo filho é atualmente baterista da Spok Frevo Orquestra.
Nos tempos de pai Dedé, Gravatá era uma cidade unida em torno de seu Pároco. Mal o Ginásio Municipal iniciava seus passos, minha família mudava-se para Caruaru, forçando-me a deixar para trás a primeira paixão juvenil, as matinês do Cine Holanda, as sopas do Hotel Hildebrando, os papos com Ricardo e Ivaldo Carvalho e a paisagem da cadeia pública, hoje transformada em centro cultural.


*) Natural de Gravatá, o autor é jornalista e morou em Caruaru e Recife antes de mudar-se para São Paulo, onde reside desde 1964.

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