GRITOS NÃO ATINGEM TÍMPANOS
Ao chegar na redação de Última Hora todas as tardes
cumprimentava meu chefe com um sonoro “boa tarde”, ao que ele respondia “boa
tarde por quê?”, na mais explicita manifestação de mau humor. Não dizia mais
nada, com medo de receber mais uma patada. O chefe da redação era normalmente
uma pessoa bem educada, chegava a ser doce, mas de vez em quando estourava na
mesma linha dos que tem a responsabilidade de produzir um jornal vibrante, que
pudesse se sobrepor aos concorrentes. Queria furos, algo que não fosse igual
aos outros, daí a tensão.
Anos depois encontro Múcio Borges da Fonseca na sauna
Chuí, em São Paulo, ele tentando recuperar-se de um infarto do miocárdio, eu
tentando controlar pressão alta e diabete. No máximo, arriscávamos um chopinho
após a suadeira. Pagávamos o preço de uma vida de altos e baixos, em que
lidamos com tudo e com todos a troco de noticiar e comentar as insanidades de
cada um, esquecendo as próprias. Isso é o jornalista.
No dia seguinte à eleição, o chefe de reportagem manda
que eu acompanhe a apuração dos votos. Queria uma manchete. Ao fazer o relato
do desenrolar da contagem dos votos Milton Coelho da Graça explode,
perguntando-me aonde está a notícia? Não havia nada, nenhum fato digno de
manchete. Ouvi aos gritos uma aula inteira sobre o que seria uma manchete – um
fato inusitado, diferente, que chamasse a atenção do leitor, algo como “um rato
saiu da urna”, sei lá.
Em outra oportunidade, minha chefe fez pequeno
discurso porque a TV Globo filmava a entrada e saída de médicos e funcionários
no saguão do Hospital das Clínicas. Tratava-se daquele tipo de imagem usada
enquanto o repórter introduz a notícia ou explica alguma coisa. A chefia
entendeu que nenhuma imagem poderia ser feita além da estritamente relacionada
com o assunto em pauta. A platéia ouviu tudo e mudo fiquei.
Houve também o dia em que um professor doutor da
Faculdade de Medicina da USP me chamou para exigir a correção de uma notícia
sobre determinada cirurgia, realizada no Incor. Não lembro detalhes, mas ele
queria que a notícia fosse corrigida. Liguei para a TV, mas não houve tempo
para a correção exigida. Ouvi tudo o que não queria ouvir.
Nunca esqueci o esporro de um motorista que dizia ter
sido fechado por mim ao sair da Via Dutra em direção a Taubaté. Já estava tomando
um chope com meu companheiro de viagem no centro da cidade quando ele chegou
irritadíssimo e passou a me chamar disso e daquilo, alegando que ao sair da
estrada eu o obrigara a uma manobra arriscada, quase ocorreu uma tragédia. Não
percebera isso, nem meu companheiro de viagem, que quis iniciar uma briga e foi
por mim impedido. Disse que não acontecera nada disso, teria notado. A turma do
“deixa disso” afastou o indignado motorista e evitou uma tragédia.
Fui admoestado também em Francês. Depois de lanchar no
restaurante do trem rápido Paris-Lisboa o garçom sumiu. Voltei a meu vagão sem
pagar a conta. Eis que ele surge com um papel na mão, proferindo palavrões. O cobrador
tomou minha fuga como calote. E era.
Não sei se esse comportamento responde por minha
sobrevivência, aos 83 anos. O leitor deve estar me achando um trouxa, mas
gritos não me atingem os tímpanos nem o fígado. Sempre procuro uma saída
diplomática.
SP 17/11/2020
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