ROMERO FIGUEIREDO
Na juventude, verbalizávamos nossa impotência diante das
dores do mundo, a beleza das donzelas, a disponibilidade das mulheres do Night
Club e o heroísmo de Luís Carlos Prestes. Líamos Vinícius de Moraes e Daniel
Lima em voz alta e curtíamos discursos irados de Aluízio Falcão, os sonetos de
Maurílio Bedor Sampaio, os solos de violão de Jaime Mendonça, ao mesmo tempo em
que nos arriscávamos em serenatas, com repertório de Sílvio Caldas e Orlando
Silva.
Romero Figueiredo era o cantor, eu o violonista.
Ainda jovem Romero parte para São Paulo e se coloca
inteiramente à disposição de Luís Carlos Prestes. Romero era uma figura de
dedicação total: quando resolvia fazer algo, fazia só aquilo. Foi assim que se
dedicou de corpo e alma ao líder comunista, cuidando de sua segurança pessoal,
ajudando-o em sua conturbadíssima agenda. Nessa época, conheceu pessoalmente todos
os líderes comunistas do Brasil.
Morava com o próprio Prestes, no centro de São Paulo, período
que mantém sob sigilo até hoje, talvez como resquício das amargas experiências
do tempo em que o sigilo era literalmente a alma do negócio. Em nome da
segurança havia um rigoroso pacto de silêncio. Até hoje tem dificuldade de
reconstituir esse período.
Em seu retiro na praia de Nossa Senhora do Ó, em Paulista
(PE), Romero tenta rememorar sua trajetória escrevendo uma autobiografia que
jamais conclui. Já escreveu centenas de páginas, mas se recusa a mostrar
alegando insatisfação com o resultado. Cada vez que relê, muda completamente o que
escreveu, tornando sua tarefa interminável.
Quanto aos dias vividos em Caruaru não há segredos. Foram
dias e noites em público, cercado de vários amigos, falante e valente. Era
sempre o primeiro a chegar e o último a sair de qualquer evento, presente e
atuante. Não me lembro de nenhum momento de indecisão ou de silêncio. Preferia
enfrentar um inimigo a omitir-se covardemente. Ao contrário de mim, que
procurava esgotar desentendimentos, afrontava qualquer um, seja qual fosse sua
condição física ou social.
Não é difícil explicar as circunstâncias em que se envolvia
nos acontecimentos da sociedade, pois além de conviver com os rapazes mais
conhecidos no colégio, nas calçadas, no cinema, nos bailes e nas manhãs de sol
dos clubes, era convocado também para trabalhar na decoração dos clubes, quando
havia bailes comemorativos.
Quem o ajudou nesse processo foi Petrônio Santos, pintor que
decorava os principais clubes da cidade, que o iniciou na arte de retoque de
fotografias e na pintura. Juntos, eles davam colorido e beleza aos salões do
Comércio e do Internacional, dando-lhes o aspecto festivo que caracterizava
grandes acontecimentos sociais como carnaval, festejos juninos e demais datas
festivas.
Com Lycio Neves, Manuel Messias, Carlos Fernando, Danilo
Queiroz, Aluízio Falcão, Arsênio Gomes, Assis Claudino, Guri, Fernando
Florêncio, Chico Santino e muitos outros, dividíamos momentos de poesia ou de
serestas, ora exaltando a mulher, ora festejando uma revolução imaginária. Eram
noites de vigília cívica, com toques de ternura.
Além do elo pretensamente político-literário que nos unia
todas as noites, formávamos uma dupla de incorrigíveis seresteiros e saíamos
pelas ruas de Caruaru. Romero sabia interpretar todas as valsas e
sambas-canções do gênero e eu tentava acompanhá-lo ao violão, de forma simples,
mas pelo menos na tonalidade correta. Arriscava até alguns solos à Dilermando
Reis.
Ao fim da década de 60 já morávamos no Recife. Enquanto eu
servia à Aeronáutica, Romero era agitador no campo, na secretaria assistente do
Governo Arraes. Aos sábados, a ida a Caruaru era inevitável. Mais uma vez nos
juntávamos aos grupos que durante o dia participavam de palestras e encontros
pretensamente literários e à noite vivia intensamente momentos de boemia,
principalmente no Brasileirinho, no Bar do Belo e na churrascaria Guanabara, onde
ponteava o Mestre Salu, figura da qual não há quem não se lembre, por causa de
sua simpática e divertida acolhida.
O golpe de 64 nos pegou de calças curtas. Eu trabalhava na
Última Hora-Nordeste e na assessoria de imprensa da prefeitura do Recife,
gestão de Pelópidas Silveira. Romero era um dos delegados da Secretaria
Assistente do Governo Arraes. Na prática, trabalhava intermediando reivindicações
dos camponeses, então liderados por Francisco Julião.
Romero tinha uma namorada completamente fora de seus
relacionamentos políticos. Uma jovem do colégio das freiras, que o amava
incondicionalmente. Para ela, pouco importava o comportamento atípico de
Romero, boêmio irresponsável e notório comunista. Ao contrário, talvez o que
admirasse nele fosse exatamente o comportamento não convencional de um jovem
inteligente e corajoso.
Diante da iminência de sua prisão ele levou a namorada para
um convento na Várzea, onde se casou antes de empreender fuga para o Rio de
Janeiro. Para tanto, contou com a ajuda de um padre amigo, que seguia os
ensinamentos de D. Hélder Câmara e na medida do possível ajudava os esquerdistas.
Era o padre Edvaldo, que transitava com facilidade entre os setores
progressistas e da alta sociedade recifense.
Regularizada a situação conjugal, o casal foi para o Rio de
Janeiro, instalando-se numa favela. Romero arrumou emprego no setor de retoque
de fotos da revista Manchete, através do amigo Petrônio Santos, que já morava
no Rio.
Alguns anos depois Romero foi para a Editora Abril, em São
Paulo, quando voltamos a nos encontrar, principalmente nos fins de semana, e
retomamos nossas tertúlias. Eram conversas animadas em que não faltavam aperitivos,
violão, canções, feijoadas, etc.
Até chegarmos ao ponto em que minha esposa, não suportando mais
os tais encontros, gritar desesperada, ao atender Romero na porta do
apartamento:
- Pronto, Flávio: chegou seu amigo. Ele entra e eu saio com
meus filhos. Não vou ficar aqui cozinhando para cachaceiros.
Registre-se que tal cena ocorreu após vários anos de
encontros em que juntávamos pequenos grupos para conversar ao som de um violão.
Ao contrário de minha impaciente companheira, a de Romero era uma santa mulher
que nos suportava até o amanhecer. Ambas participaram inicialmente das
noitadas, cantando o repertório comum nesses encontros. Mas cansaram de alimentar
nossa irresponsabilidade doméstica, em que a boemia pairava sobre a necessidade
de economizar e conduzir de forma racional nossas vidas e a formação de nossos
filhos.
Ao contrário de mim, pacato cidadão que se escondia em
misterioso silêncio, Romero era inquieto e explosivo, tornando-se mais
agressivo quando bebia. Praguejava contra Deus e o Mundo e ai de quem estivesse
por perto. Muitas vezes se meteu em confusão, tanto com estranhos como com os
próprios amigos. Só uma vez o imitei, após serenata alta madrugada à porta de
uma suposta musa. Desgostoso com o desinteresse dela, que sequer acendeu a luz
ou abriu a janela, atirei meu violão com toda força contra os paralelepípedos,
destruindo-o completamente. Romero soltou a frase que viraria livro de Fernando
Gabeira anos depois:
- Que é isso, companheiro!
Além de minha companheira, quem se irritava com a presença
de Romero, ainda nos tempos da rua Duque de Caxias, em Caruaru, era minha mãe.
Criatura doce e amável que cuidava com muito carinho de uma penca de filhos,
costurando suas roupas e alimentando-os um a um, ficava indignada quando eu me
preparava para dormir, mais ou menos dez da noite, e Romero chegava para me
buscar:
- Pega o violão e vamos embora.
Eu ia, mesmo com o protesto e a indignação de minha mãe, que
durante o dia cantarolava todo o repertório em que éramos especialistas: Silvio
Caldas, Orlando Silva, Lupicínio Rodrigues, Carlos Galhardo...
PAIXÃO INCONTROLÁVEL
Além da mulher com quem casou, Marinete Torres Figueiredo,
com quem viveu muitos anos e com a qual teve quatro filhos – Serguei, Gregório,
Ivan, Vália e Nádia, desde muito jovem Romero Figueiredo teve, e ainda tem, uma
paixão incontrolável: a revolução comunista.
Depois que enviuvou virou ermitão em Paulista, na praia de
N. S. do Ó, sem perder em nenhum momento o encanto pelas histórias relacionadas
com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Sua casa é um misto de atelier e biblioteca, permanentemente
reabastecida com “novidades” sobre a revolução soviética. Comenta com
frequência suas impressões de leitura com o amigo de infância e juventude
Manuel Messias, que por algum tempo tentou escrever uma biografia de Stalin, lendo
tudo o que existe a respeito. Semanalmente, os dois trocam ideias e atualizam
seus conhecimentos sobre o assunto.
Paralelamente, Romero tenta rabiscar os principais eventos
que marcaram sua vida, elaborando uma possível biografia. Esbarra na
dificuldade de conciliar a narrativa com sua modéstia, enfatizando que tudo o
que fazia tinha o objetivo claro de lutar pelo bem comum.
No dia a dia exagerava ao confundir ideologia comunista com
vida prática. Sempre que entrava em dificuldades financeiras, atrasava o
pagamento do aluguel da casa e explodia quando o cobrador batia à sua porta
para cobrar o aluguel. Xingava o proprietário do imóvel de explorador da classe
operária, filho da puta e ladrão, entre outras “amenidades”.
Até o dia em que uma imobiliária resolveu indenizá-lo,
juntamente com outros dois ou três moradores de casas da mesma rua, para
construir um prédio. O dinheiro serviu para liquidar suas dívidas e mudar-se
com a família para outro bairro, onde repetiu a dose, ou seja, mais alguns anos
de rebeldia contra a exploração do capitalismo. Como não conseguia entrar em
nenhuma guerrilha - seu desejo secreto - Romero direcionava sua coragem,
orgulhosamente, para infrações. Ai de quem ousasse criticá-lo por isso. Errado,
injusto, para ele, era o mundo capitalista.
Externava sua indignação contra o “capitalismo desumano” em
qualquer lugar: nos bares, nos bailes, nas reuniões de pais e mestres das
escolas dos filhos, nas reuniões de trabalho da Manchete ou da Editora Abril,
onde quer que estivesse.
Depois de deixar a grande imprensa foi gerenciar o
laboratório da Curt, empresa que se sobressaía no mercado de revelações e
confecção de filmes para impressão (fotolitos). Quando a Curt fechou suas
portas, juntou-se a alguns companheiros de trabalho e criou sua própria empresa
de fotolitos, para atender um mercado promissor. A empresa durou uns três anos.
Não resistiu à duvidosa capacidade de gerenciamento dos artistas do retoque. Seus
sócios eram cariocas, trazidos do Rio de Janeiro para a Editora Abril,
inicialmente, e espalhados pelo diversificado e rico mercado gráfico
paulistano.
BANCA DE JORNAIS DEU CONFUSÃO
Inspirados supostamente pela revolução cubana, que desde
1959 incendiava o coração da juventude com o sucesso de Fidel Castro e Che
Guevara, o grupo de comunistas de Caruaru, pequeno e aguerrido, decidiu criar
um ponto de vendas de jornais, revistas e livros que divulgassem o Socialismo
como solução para os problemas da sociedade. Mais uma vez Romero se destaca,
sendo o mais entusiasta, o mais falante, o mais corajoso e, justiça se faça, o
mais desembaraçado e decidido “companheiro”.
O grupo encarrega Danilo Queiroz da Silva, cujo pai dispunha
de uma oficina, de fabricar uma espécie de barraca de madeira, algo como uma
banca de jornais e revistas, a ser instalada em frente ao parque Siqueira
Campos, esquina da Duque de Caxias com a rua da Matriz. Ao mesmo tempo solicitou
autorização à Prefeitura, que a concedeu normalmente, talvez sem perceber os
fins “subversivos” do projeto.
Uma vez instalado, o ponto de vendas passou a divulgar
jornais, revistas e livros sobre Socialismo e temas afins. Ao mesmo tempo,
servia de ponto de encontro onde se trocavam ideias e se conquistavam adeptos.
Não demorou muito até despertar a atenção da direita, que passou a pedir
intervenção policial. Não encontrando respaldo das autoridades, alguns rapazes
passaram a tentar a destruição da banca, promovendo arruaças e ameaças de
incêndio.
Tomando conhecimento de uma ação mais violenta a ser
deflagrada de madrugada, os amigos foram convocados por Romero e munidos de
paus e pedras e se esconderam no jardim do parque Siqueira Campos, com o
objetivo de impedir qualquer ação dos direitistas. Alta madrugada, quando um
grupo começou a depredar a banca e tentou incendiá-la, os comunistas saíram da
toca e atiraram paus e pedras sobre os inimigos, botando-os a correr. Todas as
tentativas de destruição foram devidamente rechaçadas, mas a banca não resistiu
à ferrenha oposição direta e indireta da sociedade.
IDEOLOGIA ACIMA DE TUDO
Muito antes de dedicar-se à pintura e ao retoque de
fotografias Romero Figueiredo entregou-se de corpo e alma à ideologia comunista.
Em Caruaru, tentando entender Stalin, Lenine e Bukharin,
lendo e distribuindo Voz Operária, discutindo a fundo o assunto com Severino
Ferreira, conhecido por Biu Moscou, e outros companheiros. Eram poucos, mas os
mesmos que depois seriam conhecidos e perseguidos.
No Recife, juntar-se-ia ao pessoal do jornal Folha do Povo,
ora escrevendo, ora distribuindo o jornal como simples portador, arriscando ser
preso. Até que insistiu em mudar de cidade, sendo transferido para o Rio de
Janeiro e de lá para São Paulo, quando assumiu o posto de segurança de Luís
Carlos Prestes. Foi nessa época que conheceu com as maiores figuras do Partidão
na época, como já mencionei. Tal período ainda o enche de orgulho, mas não
perdoa os que debandaram e traíram o partidão.
Com mais de 80 anos, o artista da imagem é o mesmo que desde
menino sonha com as igualdades sociais imaginadas pelos líderes soviéticos.
Apesar das sucessivas derrotas no Brasil e no mundo não cede um centímetro ao
que supõe ter aprendido sobre o assunto.
Derrotado nas urnas, por assim dizer, teve a felicidade de
encontrar uma linda e fiel companheira, que lhe deu cinco filhos. Sua
fidelidade ao extinto Partido Comunista Brasileiro só perde para Marinete
Torres Figueiredo.
Somos o que permitimos ser!
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