LIVRO QUE NÃO SAI


Acho que acontece com qualquer um. Vamos ao lançamento de um livro ou disco, pegamos autógrafo, mas nem sempre lemos ou ouvimos as melodias, pelo menos de imediato. Às vezes ganhamos de presente. Tenho em mãos a biografia de Nelson Rodrigues, escrita por Ruy Castro e brilhantemente editada pela Companhia das Letras, que minha filha Flávia me presenteou ao completar 60 anos, a 12 de janeiro de 1997. Toda vez que tento ler, alguma coisa acontece no meu coração - apud Caetano Veloso - como alguém querendo varrer sob meus pés, telefonema pedindo ajuda contra o câncer ou o fumacê contra pernilongos bem na minha janela.
Como se vê, vida de aposentado não é tão tranquila como alardeiam.
Impossível ler tudo que aparece ou ouvir tudo que se oferece. Por mais que acompanhe e compareça pessoalmente aos eventos nas melhores livrarias não dá para absorver todos os novos conhecimentos que pululam na velocidade das notícias. Carminho grava Jobim, governo paulista extingue Banda Sinfônica, proliferação de biografias, um mundo de ocorrências, além de insistentes manifestações via redes sociais e fartura de delações premiadas.
Ao mesmo tempo, um amigo aposentado pede que eu produza um livro sobre ele. Todos os filhos estão casados, vários netos, vida financeira garantida pelo INSS e complementada por um fundo de pensão da empresa em que trabalhou muitos anos. Já plantou uma árvore e falta apenas escrever um livro. Tem um desejo incontrolável de servir ao próximo. Frequenta terreiro espírita aos domingos para fazer almoço comunitário e visita familiares num raio de mil quilômetros para levar presentes, desde jornal velho pra cachorro fazer necessidades até frango assado com farofa, seja lá o que for. O que vale é a ideia: servir ao próximo.  
Com esse mesmo objetivo foi candidato a vereador umas dez vezes, por diferentes partidos, só para usufruir os seis meses de licença sem prejuízo do salário. Raramente passava dos mil votos, quando precisava de 80 mil. Gostava mesmo era de distribuir “santinhos”, sentindo-se gratificado quando alguém lembrava seu espírito público, seu amor ao próximo, sua vontade de servir.  Por mais que tentasse algo mais eloquente, inusitado, não conseguia vislumbrar algum fato que pudesse originar um livro interessante. Aí ele desfilou as aventuras de sua juventude no Rio de Janeiro, aonde chegou a conviver com tipos populares da velha Lapa, como o lendário Madame Satã. Aventura nada edificante, que exigiria mais do que imaginação para ser descrita. Piorou.
Nem invocando suposto espírito jornalístico consigo produzir tal livro, da mesma forma que não consigo deglutir a avalanche de informações que o noticiário joga na mídia, acrescida diariamente de “editoriais” de qualquer tecladista.
Em janeiro próximo chego aos 80, sem saber por onde começar. O único jeito é me inscrever num desses cursos de como escrever um livro. Quem sabe a estória pobre do amigo ganhe a riqueza que a minha não teve!

São Paulo, 20 de dezembro de 2016.

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