PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS RUAS
A mais paulista das avenidas transformou-se em campo de
batalha. Mais parece o centro de Atenas ou Cairo, com multidões manifestando
descontentamento por motivos diversos. Na Grécia é contra o desemprego e a
crise econômica sem precedentes. No Egito, um caldeirão fervente de religiões,
mil e uma razões que Arlene Clemesha explica e a gente tenta digerir. Arlene é
diretora do Centro de Estudos Árabes da USP e de vez em quando dá verdadeiras
aulas sobre o Oriente Médio, no Jornal da Cultura e Globo News, principalmente.
Já a explicação das manifestações da Avenida Paulista –
agora espalhadas por vários pontos da cidade - é mais simples e dispensa as
doutas explicações da bela historiadora. Luta-se contra o aumento de 20 centavos
no preço da passagem de transporte coletivo – ônibus, trem e metrô - na Grande
São Paulo, embora haja quem admita a existência de outras razões como pano de
fundo. Certo descontentamento generalizado, não apenas com o preço do
transporte coletivo, extravasado nas vaias a presidente da República no estádio
Mané Garrincha.
Vou à combalida estante, frequentemente desfalcada pela
necessidade de desocupar espaços num apartamento de 70 m2, onde moro há 45 anos,
e encontro livro de memória que conta aventuras da juventude. Na década de 50
estudantes faziam manifestações e enfrentavam a policia de Caruaru a socos,
pedradas e pontapés. Sabem por quê? Contra o fim do desconto de 50% para
estudantes no preço de ingresso do único cinema da cidade. Quem diria! O que os
jovens fazem hoje na Avenida Paulista, centro financeiro do país, os
secundaristas de Caruaru faziam na década de 50.
O autor de “As Vinhas da Esperança – Memórias de um
Xepeiro”, médico Waldênio Porto, que depois virou presidente da Academia
Pernambucana de Letras, coloca o Agreste pernambucano como pioneiro nesse tipo
de manifestações. MIcrofone em punho, ele investia contra a polícia e condenava
arbitrariedades do delegado. Waldênio, estudante que se preparava para o
vestibular, era um agitador, para desgosto e surpresa dos que o tinham como
gente da alta sociedade local. O diretor do mais importante colégio da cidade,
Luís Pessoa da Silva, educador conhecido por sua rigidez, chamou o rapaz e
passou-lhe a mais impiedosa descompostura, mais ou menos assim: “Logo você, que
eu tinha como gente de bem”.
Alguns anos depois, no Recife, Jarbas de Holanda e Antônio
Avertano Barreto da Rocha, conhecidos líderes estudantis secundaristas - hoje
advogados e jornalistas sem vínculos partidários - participavam de movimentos
idênticos em que não faltavam depredações, pichações, agressões verbais e
prisões. Lá estava eu, presidente do diretório acadêmico do Colégio Moderno, do
bairro de Afogados, metido de corpo e alma em tudo quanto é insubordinação da
juventude. Na verdade não passava de um poeta, sensível à luta pelas transformações
da sociedade. Não é Memória que me contam, como no filme de Lúcia Murat, é o
que vi e vivi.
As agitações de hoje diferem apenas em visibilidade. Emissoras
de televisão transmitem ao vivo e em cores detalhes dos confrontos. Os
resultados não diferem: prisões, ferimentos, pancadaria e às vezes alguma morte.
Ainda não produziu nenhum novo Zé Dirceu.
Há um impasse. O aumento do preço das passagens não vai cair,
segundo as autoridades, e as manifestações não vão parar, segundo as lideranças.
Fica a mancha na ficha policial dos tidos como vândalos. Quem condena o
vandalismo corre o risco de ser chamado de conservador. O prejuízo das
depredações vai para um saco sem fundo não identificado.
Mas a praça é do povo como o céu é do condor, já dizia
Castro Alves.
(Foto: Médico Waldênio Porto, ex-presidente da Academia Pernambucana de Letras. Quando jovem, foi um dos líderes da manifestação contra cancelamento de 50% de desconto no ingresso do Cine Caruaru).
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